Crónica
Suzy Noivas
Hoje é dia de contar sobre Suzy Noivas, uma crónica que brinca de ser criança enquanto tenta se encaixar na performance de existir num mundo estabelecido, escondendo-se entre araras de vestidos em plumas e sonhos. É uma cinebiografia perfeita, o menino que corre entre os corredores de sua infância. O que cabe na imaginação de uma criança imaginativa?
Tu sabe quando você entra no mundo da Barbie que você tanto quer? Era surreal pra mim. Bicha, tô dizendo, era S-U-R-R-E-A-L. A minha vó tinha uma loja de vestidos de noivas, a Suzy Noivas. Viado, ARARAS e ARARAS de vestidos de gala de todas as cores e tamanhos. Eram brilhantes; opacos; longos e curtos; com adereços; lisos; com bordados. Máscaras e leques. Tinha um baú cheio de réplicas de joias. Em material barato, claaaaaroo. Tinha umas anáguas; uns véus belíssimos, meu amor; e uns sapatos de salto alto babadeira.
Mulher, eu ficava altíssima com os saltos, viado. Testava todos. Tudo isso porque a minha avó viajava para o exterior, sabe, daí quando voltava trazia muitos vestidos e adereços para alugar na loja dela. A minha vó era meio assim, mas ela sempre me deixava brincar na loja. A loja era junto da casa, tipo, na frente dela, e geralmente passava o dia de portas fechadas. Porque não tinha vitrine. Era uma casa que as pessoas já sabiam que tinha vestidos lá. Era popular. Boca a boca. Tinha só uma placa sinalizando, então todo mundo já sabia. E todo mundo que entrava lá já era para pegar algo específico. Não demoravam.
A nossa casa foi uma das primeiras casas do Conjunto. E a única da avenida que tinha telefone. Porque o meu avô vendia telefone da Teleceará, então todo mundo que recebia ligação ou queria ligar tinha que ir lá em casa para usar o nosso telefone. O vô também trabalhava no INSS (Segurança Social), além de vender telefone. Então já viu: todo mundo ia lá pra casa mesmo. Lá também era a primeira casa do Conjunto que vendia lembrancinha de gesso, umas coisas lá de beleza… E como a minha vó era da igreja, todo mundo a conhecia. Éramos conhecidos na avenida.
Bee, uma coisa que toda criança gosta é de ir passar o dia na casa dos avós. E comigo não foi diferente. Eu vivia em vovó, bem dizer. Quando eu ia para lá, eu ficava brincando de princesa de época. A verdade era que adorava coisas de época. Todos aqueles panos em excesso. Eu me vestia com os vestidos da loja, sabe; mas sempre aqueles vestidos mais fáceis de tirar, que era para não ser pego vestido de mulher. Morria de medo de ser pega fazendo o baratismo, viado, porque ia ser um escândalo lá em casa. Sem falar que, com certeza, iam me proibir de ir pra loja. Certeza.
Eu me lembro de que nessa época tinha um filme — sim, porque outra coisa que a gente fazia era assistir a filmes — e esse em específico sempre passava na televisão que era Manequim – a magia do amor (1991).
O filme contava a história de um funcionário belíssimo de uma loja de departamentos que se apaixonava por uma manequim. A manequim era belíssima também. Até que um belo dia a gata (a manequim) ganha vida e o boy descobre que a manequim na verdade era uma camponesa aprisionada, vítima de uma maldição há mil anos, coitada. E isso, quando ele tira o colar da manequim, é que ela retorna à vida. Era um enredo babadeira, gay.
Então, claro que eu incorporava essa princesa que tinha sido enfeitiçada. Eu peguei um cordão no baú da loja e coloquei no pescoço, que era quando eu estava vestido de menino, de mim. Isso significaria dizer que eu estava presa, amaldiçoada; mas, quando eu entrava na Suzy Noivas, na loja da minha avó, eu tirava esse cordão e me tornava uma princesa com todos aqueles vestidos só pra mim. Todas aquelas intermináveis araras e mais araras carregadas de montação.
Lá era o meu castelo. Entre um vestido e outro, às vezes, a brincadeira se misturava e tal hora a gata já se imaginava em um paraíso perdido, sabe. Muito imaginativa. Eu corria com os saltos pelos corredores pedindo ajuda: “Socorro, socorro!”. Passava horas e horas brincando. Tudo isso sozinho. A minha irmã era mais nova. Ela era uma cavala batizada e só queria saber de correr na rua. Ela vivia cheia de pereba de ferida de queda de menina traquina. E meu irmão era um bebê ainda. Entre dois e três anos de idade. Mas eu, aaaah, eu era uma princesa.
Eu lembro que, algumas das vezes, por pouco a minha vó não me pegava com os vestidos. Mas eu era esperta. Quando eu a percebia chegando, eu me escondia no meio dos vestidos dentro das araras e tirava tudo. E então eu colocava o meu cordão enfeitiçado e voltava a ser manequim outra vez. Ela nem notava eu escondida, mas eu estava ali, bem princesa, protegida no meu castelo.
Artigo da autoria de Ícaro Machado