Crónica
JUP NO DIVÃ
Dos desenhos do rosto às linhas sulcadas sobre as mãos, do tom das roupas que trazem vestidas aos trejeitos que apontam a forma do coração, quando observamos as pessoas os nossos olhos contam toda uma história. Real às vezes, inventada quase sempre. E porque há tantas histórias possíveis de serem contadas, todos nós temos uma possibilidade de vidas sem fim.
Defrontamo-nos perante uma possibilidade de histórias infindáveis pois há certamente poucos terrenos tão férteis como a mente humana. Férteis no melhor, no pior e no desconhecido. Paralelamente, a história da psiquiatria reflete uma diversidade de perspetivas e uma demanda por respostas que atravessa várias dimensões do conhecimento, da biologia à psicologia, desta à sociologia e filosofia, não se reduzindo a nenhuma delas. O dualismo corpo-alma (ou biológico-psicológico), ou o binómio razão vs emoção ilustram a necessidade de uma multidisciplinaridade para o entendimento da doença mental.
Até mesmo na antítese de si mesma a psiquiatria se refugiou, e bem. Por carecer de instrumentos diagnósticos e abordagens eficazes de tratamento, a doença mental sempre esteve mais facilmente sujeita ao julgamento humano do que à avaliação médica. Não sendo a psiquiatria senso-comum, esta ferramenta alimenta facilmente o ciclo vicioso incompreensão-julgamento-estigma do qual naturalmente resultam a segregação e descuido do doente. Nos dias de hoje, apesar de um melhor conhecimento do substrato neurobiológico de diversas funções cognitivas e emocionais alteradas em diversas patologias, e de um traço genético bem estabelecido nalgumas delas, as dificuldades mantêm-se, dentro e fora da comunidade médica, fazendo do caminho a percorrer longo e árduo. Porque, esperamos nós, a psiquiatria vai sempre tratar mais do que cérebros com pessoas dentro, o que tem tanto de fascinante como desconcertante, pela variabilidade e imprevisibilidade subjacente a cada ser.
E depois de toda a ciência desmontar a dinâmica cerebral, a psicologia explanar todos os significados escondidos dos afetos latentes, e depois de toda a filosofia ser respondida, vamos certamente precisar de muito mais, de apurar a dinâmica dos silêncios: o doente é sempre maior do que a nossa melhor capacidade de entendimento.
Das histórias sem final feliz, das histórias circulares que nos prendem a alma, há sempre uma possibilidade de narrativas sem fim. Só precisamos que cuidem de nós, muito bem, ou muito mal. Todos precisamos de ser cuidados. Generalizou-se a ideia de que podemos sempre, muito egoisticamente ser felizes e saudáveis. Tanto mais felizes quanto maior a força de vontade, seja lá o que isso for. Não é conveniente estarmos tristes nem admitir que somos fracos, que temos dúvidas ou erramos nas nossas escolhas, que precisamos de ajuda. Que por vezes o medo é tão grande que nos esmaga a força. Irónico como numa sociedade em que não se tolera a tristeza se fala tanto de depressão. Psiquiatrizamos as histórias, frenamos as emoções, aceleramos o tempo até deixarmos de sofrer, de estar insatisfeitos ou inquietos. De deixarmos de viver. E para quê?
A felicidade que tanto procuramos (ou nos exigem que mostremos) não está certamente muito longe da vida, exatamente como ela é ou acontece. Só precisamos de saber caminhar com (e não contra) a bagagem das nossas vulnerabilidades físicas, psicológicas e sociais, a par dos talentos e sucessos amealhados, por vezes a muito custo, protegidos pela manta dos sonhos. Esses sonhos que nos capacitam a alma. E sermos capazes de cuidar e sentir que nos cuidam.
Se olhamos para dentro, na diagonal do passado ou na expectativa do futuro, percebemos que a possibilidade da loucura não é apanágio dos loucos, é apenas a distância que vai entre nós e nós mesmos. E porque é tão fácil sermos doentes mentais, ou porque por vezes o sofrimento se confunde com a doença, é difícil o equilíbrio entre fazer bem e não fazer mal a quem se senta do outro lado da mesa do consultório e debita todo um baú de incertezas, incoerências, angústias ou acasos mergulhados em raiva e lágrimas – e o que tem o psiquiatra a oferecer? Por vezes as palavras e os silêncios não chegam, mas os fármacos têm efeitos laterais e os rótulos aprisionam. Mesmo quando estão certos, por vezes pesam mais do que a própria doença. Não há respostas únicas, e nem sempre é possível esperar pela cura que o tempo traz, mas talvez importe primeiro cuidar a pessoa e só depois tratar a doença.
Quando o fim parece chegar, todas as vidas valem a pena serem vividas? Quando o saco das vulnerabilidades é demasiado pesado e ninguém cuida de nós, quando a alma rasga de sentido e o coração cansado atrofia, continua a valer a pena?
Acredito que, precisamente pela complexidade da nossa história e biologia, há sempre espaço para alimentar os porquês de esperança: quando o fim parece chegar, podemos sempre começar pelo princípio. Se a bagagem é demasiado pesada e ninguém nos ensinou a transportá-la, podemos reaprender e reescrever tudo de novo. Existe uma multiplicidade de histórias sem fim mas a narrativa é sempre a mesma: somos só pessoas. Pensamos e sentimos, percebemos pouco do que andamos cá a fazer. Às vezes ficamos doentes, mas não somos a doença. Temos um fim, como tudo tem um fim. E um princípio: por mais intensa que a chuva seja, o sol acaba sempre por chegar e enquanto as nuvens brilham carregadas de cinzento, somos felizes na expectativa de que o sol cresça!
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David Guimarães
04/04/2015 at 23:48
Excelente artigo amiga Célia! Lanças muitas ideias que poderás ainda desenvolver em futuros textos com mais minúcia. O espaço que vai desde a desmesurada psiquiatrização até uma perspectiva excessivamente ontológica é vasto e poderá, nesta rubrica, ser desmistificado. A tua abertura multidisciplinar é humilde e inteligente. A enclausura cientifica nunca é solução para uma compreensão global da complexa tragédia/comédia que é a vida humana.
Espero ansiosamente pelos próximos artigos!
Um grande beijinho!
Célia Soares
05/04/2015 at 20:12
Obrigada David! Assim tentarei 🙂 beijinho grande