Crónica

FLORBELA ESPANCA AQUI NÃO ENTRA

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Beatriz Hierro Lopes

Por familiar tradição persiste a crença de que há livros que deverão ser lidos em momentos específicos. Assim, em casos de doença, mais ou menos prolongada, deverá ler-se «O Pretendente Americano» em voz alta – a leitura em voz alta é obrigatória, pelo que, caso o doente se veja impossibilitado de tal façanha caberá ao seu familiar mais próximo fazê-lo – Mark Twain é o antídoto.

Em casos infantis deverá ser substituído pela Condessa de Ségur, nomeadamente nos “Desastres de Sofia”, em que a endiabrada petiz queima os cabelos à sua boneca de cera preferida que, algumas páginas depois, ficará também cega: a imagem dos seus olhinhos, contas de vidro, caindo para o interior da sua cabeça calva ficarão para sempre marcados na memória do enfermo, garantindo, assim, a convalescença da criança que, atenta a tal facto, jamais poderá sucumbir a um letárgico estado potencialmente fatal.

Uma fraca correspondência, dir-me-ão, entre Twain para adultos e Ségur para crianças, ao que responderei: antes isso que os cinco, os sete, ou o diabo a quatro. Twain é para a gargalhada com o seu exército de zombies o que Ségur com a decomposição letal da boneca de Sofia é para as crianças: um contínuo chamamento. Não é possível morrer-se enquanto se ouve «O Pretendente Americano», disso sirvo de prova, como também da impossibilidade do mesmo acontecer mediante as diatribes de Sofia, pela qual fui igualmente salva.

Em casos de aguda depressão feminina não raras vezes é aconselhada a leitura de Zola; com efeito, mediante a tragédia das suas personagens, qualquer vida contemporânea e europeia parece-se, subitamente, com algodão doce. Balzac, nunca esquecido, é contudo deixado para leves crises existenciais, das que surgem ciclicamente nos primeiros anos da adolescência e mais tarde são reavidas nos primeiros trinta. De Balzac, de quem gosto particularmente, tenho a dizer que o seu busto no Père Lachaise, no ano de dois mil e doze estava envolvido por um emaranhado florescente de redes, como se o próprio estivesse fechado para obras, o que me pareceu, à época, enquanto negligentemente me sentava sobre a tumba de Proust – em mármore negro de muitíssimo bom gosto – de uma sagaz ironia. Envolvido na medonha cor, Balzac fitando o infinito pareceu-me finalmente personagem digna da sua própria «Comédia Humana».

Mas se livros há que salvam, outros há que o negam, o que de resto bastará para que se compreenda inteiramente o título deste texto.

E, contudo, embora a sua «Mulher de Trinta Anos» de Balzac seja lugar comum à leitura feminina ao atingir tal idade, outro autor se revela nesta pessoal e talvez bizarra tradição familiar: Hemingway. Na transposição dos trinta, Robert Cohn, judeu pugilista – o que de resto bastaria para criar uma extraordinária personagem – é, no seu diálogo com Jake, o veterano de guerra, e na resposta deste à sua questão de carácter filosófico: essencial. Razão pela qual aqui reproduzimos o diálogo entre ambos: « – Não posso suportar a ideia de que a vida me foge tão depressa, sem que eu de facto chegue a vivê-la.

– Ninguém vive a sua vida plenamente, a não ser os toureiros.»

A ousadia de Hemingway que, fosse hoje vivo e seria chicoteado por um punhado de gente pela sua tauromáquica paixão, esclarece: só no confronto com a morte se está verdadeiramente vivo. E é esse o saber indispensável ao ser-se adulto em altura.

Levando-me a crer, o que poderá ser imensamente perigoso, que se a vida é um sonho, como disse Calderón de la Barca, só a presença da morte pode despertá-la. O que nos leva a derradeira questão a que nenhum livro ainda respondeu: se a vida fosse vivida acordada, o que faríamos nós de nos próprios?

1 Comment

  1. Pedro Sousa

    19/06/2015 at 00:56

    Para quem considera viver não mais que o duelo com a morte, os meus pêsames; sugiro uma longa estadia na amazónia ( ou sítio semelhante ), onde certo viverão que se farta.

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