Crónica
SANTO ANTÓNIO
Pedira-o ao Santo. No tempo próprio de o pedir. Nada falhara. As velas, a oração reaprendida, sim, porque não fora à primeira nem à quinta vez que o conseguira; o Santo, teimoso, demorara-se ao longo de meia dúzia de anos. Quando, por fim, lhe obedecera, D.ª Engrácia mandou a criada comprar uma imagem maior para o oratório. Alto, mais alto que qualquer outro Santo, António de livro, lírio e bendita criança ao colo, tudo suportava, diante do olhar suplicante de sua amável patrona.
Porque os santos, como o são nos dias de hoje, apenas em igrejas ou então em mesinhas-de-cabeceira em fim de vida, mas aquele não; abençoado que fora com um centenário teto em talha dourada dos que faziam lembrar os tempos em que qualquer mulher não só tinha o seu santo como dele cuidava. Um pouco como hoje o fazem com os cães, gatos ou até mesmo plantas.
De costas voltadas para o quarto num castigo que anunciava o atraso do marido, Santo António de Pádua, não podia protestar. Vi-o umas poucas vezes. A túnica castanha e os ombros queriam-me parecer, levemente descaídos, suportavam um cansaço milenar que nem um centenário teto estrelado conseguiria apaziguar. Imaginava que um dia fugiria. Nunca o fez.
D.ª Engrácia que, invariavelmente, lhe enchia de lírios a jarra a seus pés, maldizia-lhe o marido que lhe arranjara mas, santo é santo e achava-se demasiado velha para os gatos. – A idade, como tudo, ensina-nos, repetia-me. Quando lhe perguntava porque não havia só um vaso com plantas em lugar da estátua dizia-me que às flores se não deve pedir nada. Nem a cães ou a gatos, menos ainda aos pássaros. E quando lhe ofereci uma borboleta fechada num frasco vazio de compota de morango quase me bateu: – está parva? Vou lá eu pedir a um bicho de asas que me foge mal eu a abra?
Há que fazê-lo a quem não fuja. Foi nesse instante que percebi que nem os Santos, nem Deus, estavam absolutamente livres da sua derradeira condição: a de conceder mais vida a moribundos, maridos a mulheres solteiras, filhos a gente estéril e, dinheiro, sempre algum dinheiro, até mesmo para sustentar a sua própria existência, como me explicara D.ª Engrácia. Afinal, sem moedas na carteira como compraria os lírios ao Santo? O próprio tinha de intervir para garantir a sua subsistência que Santo só é Santo com velas, várias, flores, da sua preferência, e rezas, essas ainda, gratuitas. Mas ao que era gratuito impunha-se a severidade da concretização dos milagres, caso contrário, costas viradas ao quarto, olhar fixo no interior do oratório, pela imensa falta do marido. É que o Santo, segundo Engrácia, fora excessivamente zeloso ao conferir-lhe um homem demasiado trabalhador. O trabalho do homem, que nem por isso aumentava os rendimentos familiares, resultava, por consequência, no castigo do Santo que, ao longo dos anos, habituando-se aos mesmos já com dificuldade sentia a mão rugosa virá-lo de frente para o quarto.
Uma espécie de reumatismo sagrado que lhe advira da sua natureza miraculosa e do qual sofria silenciosamente. Das mulheres que conheci, D.ª Engrácia foi a única justiceira entre os santos. A maioria dada à jardinagem e a domesticidade de animais e homens, raramente se voltava para Deus e seus conterrâneos, nem mesmo em perigo de morte. Pensando nisso, poderíamos achá-las mulheres sem crença e, contudo, creio tê-las visto, numa ou noutra ocasião, à busca de um consolo, fosse na forma como ajeitavam a terra às plantas ou na maneira dócil com que tratavam o gato, como se Deus, naquele caso, fosse, sem promessas, uma resignação menos triste do que a alegria a que não ambicionavam chegar. Nessas, havia qualquer coisa de misterioso, mesmo sem orações.
Uma, em particular, chamou de António ao seu gato preferido por o ter encontrado no dia do Santo. Vizinha de frente de D.ª Engrácia cujo marido entretanto falecera, D.ª Rita estaria longe de imaginar que tal caso se revelaria decisivo para que o Santo de D.ª Engrácia, ouvindo o sucedido, farto de olhar meia cama vazia e ouvir as preces de sua patrona, aproveitando uma noite de maior turbulência religiosa, se tenha atirado ao chão, livrando-se para todo o sempre deste estranho tempo em que mulheres acalentam gatos e domesticam santos.