Crónica

BEIRUTE: A SUÍÇA DO MÉDIO ORIENTE (?)

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“Fall down seven times, stand up eight”.

Patrícia Fernandes

Antes de tomar a decisão de ir para o Líbano, em Junho do ano passado, com o propósito de ir fazer voluntariado com refugiados sírios, foi-me dito várias vezes que Beirute era a “Suíça do Médio Oriente” e eu quis acreditar – por momentos. Já estive na Suíça várias vezes e não conheço o país por inteiro, mas o tempo que passei em Beirute foi o suficiente para perceber que esta metrópole nada tem a ver com a Suíça. E vou-vos explicar porquê.

A guerra da Síria forçou cerca de 2.3 milhões de refugiados a procurar protecção nos países vizinhos, entres estes o Líbano, a Jordânia, a Turquia, o Iraque e o Egipto. O Líbano representa, sem sombra de dúvida, o caso mais vulnerável em comparação com os seus vizinhos, por várias razões:

  • O Líbano não tem presidência. O Parlamento Libanês falhou claramente na eleição de um presidente. As eleições estavam previstas para 23 de Abril de 2014, porém nenhum candidato alcançou 2/3 de maioria na primeira ronda e na segunda ronda não houve quórum. A 25ª ronda estava agendada para 24 de Junho do mês passado e, mais uma vez, não houve quórum. As próximas votações estão agendadas para 15 de Julho deste mês. Até lá, o Parlamento encontra-se numa paralisia total, e provavelmente assim se manterá;
  • O Líbano tem uma comunidade polarizada e dividida, e por conseguinte, com várias alianças políticas. A chamada Aliança Política de 8 de Março (liderada pelo Hezbollah, o partido proeminentemente xiita) apoia o regime de Assad, ao passo que a Aliança Política de 14 de Março (liderada pelo Movimento Futuro, o partido proeminentemente sunita) apoia o Exército Livre da Síria;
  • O rácio de refugiados comparado com a população local é consideravelmente alto. Actualmente, existe um refugiado sírio por cada quatro pessoas locais;
  • O alto influxo de refugiados (diariamente, cerca de 7 mil refugiados entram em território libanês, enquanto 6 mil ainda esperam por um registo para entrar);
  • A dispersão desigual de refugiados entre as 1500 localizações do país. O Vale de Bekaa é a região com o maior número de refugiados, cerca de 418,189 refugiados.

O Vale de Bekaa é a casa de cerca de 400 famílias refugiadas. Este foi o campo de refugiados onde estive, onde distribui comida, onde ensinei inglês a crianças (dificilmente e com tradutores pelo meio). Ajudar dessa forma foi absolutamente extraordinário e indescritível, mas ouvir as histórias daquelas famílias foi de cortar a respiração. É doloroso sentir o sabor da injustiça: pessoas envolvidas no meio de um conflito sem terem qualquer culpa do mesmo. Só porque sim. Só porque nasceram ali.

Aquele pedaço de terra – uma passagem principal entre Damasco e Beirute – presenteou-me com várias lições de vida. «Será possível reconstruir pessoas destruídas?», perguntei-me várias vezes. Não sabia a resposta, e ainda não sei, apenas sei que era e é exactamente disso que elas precisavam e precisam.

Depois desta experiência – que não consigo descrever tanto em palavras como gostaria – aprendi muito do que julgava ser inimaginável antes. Tive professores excelentes, aulas excelentes, palestras excelentes, que me forneceram diversas ferramentas e lentes para perceber o mundo, para olhar para o mundo. Mas a sensação do desconforto e da dor, a sensação de acordar de manhã e ir à varanda respirar, com vista para prédios e construções cheios de marcas de balas bem à vista, ou para outros que estavam completamente desfeitos no chão, destruídos… Aquela vista! Não, isso tu não aprendes numa sala de aula. A sensação de te misturares com pessoas de um país completamente seccionado, de andares na rua e te deparares com vans pretas, de aspecto duvidoso e vidros fumados… Sim, eram membros do Hezbollah. Welcome to Lebanon. Não, isso tu não aprendes numa sala de aula.

A sensação de te misturares com pessoas que, ao contrário de ti, tentam todos os dias ignorar as cicatrizes profundas da guerra. A sensação de te misturares com religiões diferentes. A sensação de te misturares com palestinianos (bem unidos!) na Hamra Street, a manifestarem-se contra o óbvio. Hamra Street – uma rua muito conhecida em Beirute. Sentas-te lá durante uma tarde e conheces os segredos da cidade.

A sensação de seres abordado vezes sem conta por crianças refugiadas nas ruas, a pedir comida, outras dinheiro. Crianças lindas, algumas delas sempre prontas para oferecer uma flor, sem querer nada em troca. A pior sensação de todas: a impotência. Histórias de crianças (e não só) violadas nas prisões do regime de Bashar Al-Assad. Histórias contadas pelos pais. As crianças não falavam. Mas nunca achei que fossem precisas palavras: as cicatrizes do corpo falavam por si.

Impotência. Uma sensação que nunca tinha experimentado antes.

Além de tudo isto, chegar a Beirute foi a experiência mais estranha de sempre. Aterrei depois da meia-noite e mal entrei no aeroporto estava um segurança a separar os nacionais dos estrangeiros. As pessoas foram divididas e quem era estrangeiro tinha de tratar do visto. É aqui que começa. Estive fechada dentro de uma sala minúscula, durante uma hora, com dois seguranças do aeroporto (vestidos com algo que se assemelha a uma farda militar), que não decidiam se deviam falar em inglês ou francês, então decidiram simplesmente misturar as duas línguas. A pergunta que me marcou mais e que, por sorte, foi toda ela dita em inglês: «Why have you decided to leave Portugal and come to a so destroyed country?». Eu não abri a boca. Depois, quiseram saber tudo, desde números de telefone, sítio onde eu ficar, etc. Por fim, entregaram-me o passaporte na mão e saíram daquela sala minúscula sem dizer nada. Finalmente tinha o meu visto e estava “livre” para ir embora. «Welcome to Asia», disse-me o segurança do Passport Control.

 

Bem-vindos ao Líbano. E não à Suíça do Médio Oriente.

O Líbano pode ter montanhas. Pode ter uma sociedade pluralista. Pode já ter tido uma segurança bancária conveniente (e também produzem chocolate!). Porém, este é um conceito do passado.

Quando regressei a Portugal, fiz uma escala em Istambul. Estive 24 horas naquela cidade incrivelmente linda, sem dormir. Não conseguia, tinha de a conhecer o máximo possível. Tinha de fazer amizade com ela.

Estava amorfa e apática. As minhas sensações estavam completamente misturadas e confusas. Mas, apesar de estar assim, Istambul derreteu o meu coração por completo e eu apaixonei-me perdidamente pela cidade. No final do dia, apanhei o voo para Lisboa e adormeci durante toda a viagem.

Só acordei quando estava quase a aterrar em Lisboa, com uma senhora velhinha italiana, muito chata, que falava alto e estava sentada ao meu lado. Eu estava sentada perto da janela e ela abriu aquele pedacinho de tecido minúsculo, deixando entrar a claridade toda. Não gostei daquele sol a bater-me na cara, mas só tive tempo de pensar «estou de volta».

Senti-me estranhamente feliz e confortável. Mas após alguns minutos, depois de ter aberto completamente os olhos, eu já sentia que queria voltar. A minha curiosidade vence o meu medo. E isto tem um nome: ambição.

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1 Comment

  1. Rebeca Menezes

    17/02/2016 at 17:22

    Boa tarde Patricia,

    Acho maravilhoso o que fizeste! Gostava muito de saber com qual organização contataste para ires para Beirute.

    Atenciosamente,

    Rebeca

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