Crónica
PORTO BRITÂNICO
À cidade-pensada pospõe-se a cidade-imagem: Porto é Sandeman, é Graham, é Dow. É o «Douro Portuguez» com catorze palmos de comprimento e três de largura, utilizando como medida um palmo por duas léguas portuguesas, desde Espanha até à Foz, descrito e cartograficamente imortalizado por Joseph James Forrester, esse escocês que decalcou o corpo do rio. Mas se o Porto é o Porto do vinho, do rio, é-o também o da fotografia, as primeiras de Frederick William Flower, que hoje podem ser apreciadas na Exposição: «Tesouros da Fotografia Portuguesa do século XIX», sobre a qual nos debruçaremos em momento oportuno.
O Porto oitocentista, liberal e romântico é, ainda, o Porto de hoje. Grandes homens e grandes feitos lançam grandes sombras sobre o futuro: tal é o tempo como hoje nos pertence. Aqui se sublinha a inestimável herança que a comunidade britânica portuense legou à cidade que, não sendo sua, se fez sua, e onde, participando activamente da sua construção, escolheu permanecer.
Os nomes que enumerei por serem conhecidos do grande público portuense, não constituíram tão-somente uma parte da história, eles fizeram a História e, como convém a tal disciplina, a História perfaz-se na morte; assim, foi com grande admiração e entusiasmo que assistimos no passado dia treze de Junho à visita, organizada pela Câmara Municipal do Porto e orientada pelo Prof. Francisco Queiroz, ao Cemitério Britânico do Porto. Não sendo a primeira iniciativa desta natureza, pois já se fizeram visitas ao cemitério do Prado do Repouso, Lapa e Agramonte, é de enaltecer tais iniciativas e de esperar que as mesmas se repitam o mais brevemente possível.
Quase sempre por marcação e quase sempre esgotadas. Há muito que as gentes do Porto e os seus ocasionais turistas se aperceberam da incontestável importância do turismo cemiterial devido ao, igualmente, inegável valor da linguagem iconográfica tumular. A morte é, para a vida humana, como é para o teatro, o último acto, a derradeira cena, o que fecha e abre simultaneamente o valor do que foi vivido. Assim, ao contemplarmos as lápides de Burmester, Sandeman, Graham, Moser, Flower, Redpath, Reid ou as dos oficiais britânicos da Royal Air Force que deram a vida pela sua causa, não estamos, morbidamente, a observar um fim. Mais do que isso, através da sua configuração podemos aferir o carácter do defunto, e mesmo, quais os desejos que vivos lhe legaram em derradeira homenagem.
Ninguém melhor que o Prof. Francisco Queiroz poderá, alguma vez, na nossa opinião, explicar de forma envolvente a importância da arte tumular e da íntima relação com a biografia dos seus mortos; devido não só ao seu amplíssimo trabalho académico nesta área, como à sua devoção ao século XIX e contínua investigação arquivística. Trata-se de um Historiador de Arte que, contrariando o que se vem tornando regra, não se contenta com o assento confortável da cadeira do gabinete universitário; não, aqui falamos, de quem faz História – fazê-la é descobri-la – lendo manuscritos originais, viajando, tropeçando nas pedras de cabeceira e pedras dos pés – no caso do cemitério britânico em que as sepulturas eram assim identificadas, abusando de uma estética minimalista que encontra razão na crença anglicana – buscando, incansavelmente, o encontro com o fio narrativo da própria História.
Dito isto, que nos parece não só justo como absolutamente indispensável, debruçamo-nos sobre alguns dados que nos parecem dignos de nota: o Cemitério Britânico do Porto, data de finais da década de 1780, muito embora a comunidade britânica e os protestantes em geral aqui se tenham estabelecido bastante antes. Onde eram então sepultados os cadáveres dos estrangeiros protestantes? Nas areias do Rio Douro ou da Foz, em maré baixa, ou num terreno em Gaia, na encosta do Cavaco junto ao rio. Desde 1716 aí se faziam sepultamentos, evidentemente, sem lápide ou qualquer tipo de identificação. Tal, deve-se à crença anglicana de que, depois da morte, não existe purgatório, não havendo por isso razão para rezar pelos mortos.
Mesmo passados quase quarenta anos e tendo o rei D. José I, decretado a construção de um cemitério protestante no Porto, os sepultamentos no lodo do rio continuaram por aparente obstinação da comunidade britânica. Apenas em 1785, o Cônsul John Whitehead, figura eminente no Porto, começou a dar andamento ao processo de compra do terreno: tratar-se-ia do primeiro cemitério ao ar livre do Porto. Obrigatoriamente murado, longe das muralhas da cidade, para que não chocasse a comunidade católica, aí se começaram a enterrar não só britânicos mas, ao longo do tempo, alemães e hanseáticos. O primeiro sepultamento assinalado com uma pedra datará de 1798, pertencendo este n.º 1 a Thomas Stafford, num cemitério geometricamente dividido em quatro talhões em cujo centro encontramos o monumento fúnebre a Whitehead.
De uma incrível beleza, encontramos pedras de cabeceira com símbolos simples: flores como saudades e perpétuas, que nos dão conta da influência tardia da arte tumular nacional nesta comunidade, que assim adopta a expressão, tão romântica, da «saudade perpétua»; outros mostram-nos carvalhos quebrados, símbolo de força e da vida ceifada, assim como as colunas partidas. Se inicialmente, sob gestão da Feitoria Inglesa, as sepulturas eram simplesmente numeradas não afigurando sequer o nome da pessoa, obrigando os familiares a consultar um livro próprio em que cada número correspondia a um nome; no centro do século XIX, o anonimato dá lugar à inscrição não só do nome, da idade, mas também da causa da morte. Este último parâmetro invulgar ou quase inexistente na arte lapidar portuguesa da mesma época.
O cemitério tomado pela vegetação que propositadamente se parece enlaçar em redor das pedras de cabeceira, guarda, como um segredo, a sensação de uma vida que a morte não soube silenciar. O que é certo na História que ali não viu o seu fim, antes se imortalizou, lançando-nos este presente em que o Porto é, também, um Porto Britânico.
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