Crónica

NA AMÉRICA LATINA #2

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“Que diós la tenga” e um aperto de mão vigoroso ou um abraço, é a fórmula de despedida que a maioria das pessoas com quem trabalho no mercado me dirigem. O meu dia a dia está lá. No meio da fruta pelo chão, da comida que borbulha, das toneladas de carvão e batatas, das crianças e dos cães que se enfiam por debaixo das pernas, das tendas de roupa usada e de costura, dos pregões que anunciam “frutilla, 50 centavitos!”, muito alto e com voz muito aguda.

Trabalho em dois mercados e nos dois existem projectos diferentes. No primeiro, o de Camal, o projecto já dura há dois anos e está num sector muito localizado: o das batatas, do carvão e da roupa. Aqui, temos todos os vendedores como nossos pacientes e todos já nos conhecem pelo estetoscópio ao pescoço. Aqui, somos um pouco como médicos de família para quem não os tem. E ouvintes e confidentes. Medimos semanalmente a glicose e a pressão arterial aos diabéticos e hipertensos e bimensalmente aos saudáveis para garantir que o continuam. Quando os valores não estão bem, temos as repetidas palestras sobre o exercício físico, o cuidado com o sal e as gorduras e tudo o resto. Mas acredito que o saberem que têm este controlo todas as semanas e o nosso olhar reprovador se não cumprirem os nossos conselhos, os faz ter mais cuidados ou, pelo menos, estar mais atentos e lembrar-se todos os dias que os devem ter. Não fazemos só isso: marcamos consultas se necessário, sentamo-nos um pouco para ouvirmos preocupações. E somos recebidos com tanto carinho! Oferecem-nos comida, vêm muito contentes de manga arregaçada dizer que esta semana sim, se portaram bem. E sabe tão bem saber que só por terem alguém que se preocupe com a sua saúde já ficam tão sinceramente gratos! Gosto muito de ir ao mercado de Camal ver os “meus doentes”.

O outro projecto está no mercado de San Roque. E é um projecto muito mais ambicioso que pretende chegar a todos os sectores e a mais de um milhar de pessoas sem acesso a cuidados de saúde. É muito emocionante estar no seu início. Entre muitas reuniões com o Ministério da Saúde e alguns Centros de Saúde, o projecto está agora em marcha. O principal enfoque é a educação para a saúde e a prevenção da diabetes e da hipertensão, as duas patologias mais comuns nos dias de hoje e com tanta prevalência no Equador, um país em que a dieta base são batatas, arroz e carne frita. Agora estamos na fase das inscrições. Andamos posto por posto a anotar os dados dos vendedores, a sua história clínica e familiar, os seus estilos de vida e os seus factores de risco. Aqui, somos por vezes olhados com desconfiança, porque muita gente pensa que queremos usar os seus dados para fins negativos ou tentar no fim obter algum dinheiro com isto. Mas a maior parte das pessoas é muito receptiva. Depois da inscrição, e de acordo com um inquérito feito pela Organização Mundial de Saúde, as pessoas que tiverem em risco de ter diabetes ou hipertensão, vão ser restreadas por uma equipa de enfermeiros que se vai deslocar ao mercado. Depois, cada uma das pessoas que padeça da patologia ou da pré-patologia vai ter um processo iniciado no Centro de Saúde e uma equipa de médicos, assistentes sociais e psicólogos que as vão acompanhar. Ainda no projecto, vamos elaborar palestras sobre o tema e, muito importante, tentaremos ter um olhar integrado, e não só cuidar a pessoa em termos médicos, mas também ter atenção aos problemas familiares e pessoais. Para isso, a organização em que isto está inserido, o CENIT (Cientro de la niña trabajadora), cujo principal objectivo é a erradicação do trabalho infantil e que já tem bases criadas com as crianças e as famílias no mercado, vai tentar coordenar todas as suas frentes.

Resumindo, é algo que está a arrancar e que penso que, a resultar, pode ter consequências muito positivas nesta população. Estou muito empolgada.

Claro que nem tudo são rosas. Os mercados são sítios muito perigosos onde nem só por um momento podemos deixar de estar agarrados à carteira. Nas escadas, há vendedores de cocaína aos olhos de todos. De vez em quando, soa o alarme e vemos toda a gente a correr com paus para apanhar algum ladrão. Os piropos às “gringas” acontecem todos os dias. Mas enfim, são coisas sem importância no geral das coisas.

As minhas semanas têm sido isto. E, claro, jantares com as pessoas da casa onde estou, muita conversa, muita música, muita leitura. E todos os dias me apaixonar mais por Quito. E nos fins de semana… Apaixonar-me ainda mais pelo Equador!

Otavalo: um mercado a duas horas de Quito. O maior mercado do Equador e um dos maiores da América do Sul. O mercado de animais, todos vivos. Cada vendedor acompanhado das suas vacas, cabras e porcos da índia. Todos com os seus chapéus andinos e roupas coloridas. E o mercado da roupa, corredores e corredores de camisolas de lã andina de todas as cores! E tanto, tanto movimento e tantas tantas pessoas! E caminhar nas montanhas, campos verdes com a cidade pequena em baixo.

Mindo, ou como caminhar horas no meio da selva, com folhas gigantes a baterem-nos na cara, lianas baloiçantes e uma monotonia linda de verde. E tropeçar em cascatas a cada passo, caindo violentamente e fazendo uma festa de espuma em baixo. Ou Baños e subir 3 horas uma montanha por estradas tão inclinadas que me sentia a fazer escalada. E chegar à Casa del Arbol e baloiçar num baloiço sobre as montanhas, para trás e para a frente no infinito, vendo as colinas aproximarem-se e afastarem-se ao ritmo das minhas pernas. E biciclar por entre montanhas e mais verde e mais cascatas.

É, viver sonhos sabe bem, e este está a ser fantástico.

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