Crónica
NUM AUTOCARRO PORTUGUÊS
Ia eu pacificamente de regresso a casa no 203, a ler o meu Tintin – uma azáfama, o repórter e o Capitão Haddock a tentarem-se safar num navio em chamas! – até que, mais em pânico ainda, surge uma velhota a implorar que ligassem para a Linha Azul, por favor, que se tinha esquecido da carteira num outro autocarro. Quase ninguém se mostrou minimamente preocupado (pareciam indignados até) e eu lá tive que deixar o Tintin e o Capitão Haddock à mercê deles, para ajudar a indefesa dama (de suas oitenta e piques Primaveras) em apuros.
Marquei o número que estava indicado no vidro, perto do meu lugar, pus a chamar e cedi o meu precário zingarelho de comunicação à distância. A senhora estava tão apoplética que gaguejava ligeiramente e, maravilha, tinha aquele sotaque Trás-Montano que tanto me apraz ouvir. Enquanto balbuciava o número do autocarro que lhe furtou a preciosa carteira, o bandido, outra senhora piscava-me o olho, numa tentativa de cumplicidade mesquinha, sem retorno – que eu adoro estes idiossincráticos acontecimentos; desde que acabem bem!
Terminada a sua conversa com o funcionário da STCP, pediu-me que lhe ditasse o seu próprio número, que se encontrava escrito num papelinho colado atrás do seu aparelhómetro de telecomunicações portátil. Feito isto, a minha recém-amiga queria-me pagar pela disponibilidade… “Deixe estar, minha senhora! Não tem problema nenhum!” – respondi. Foi a partir deste momento que todos os outros passageiros realmente se inteiraram do drama, da tristeza, da desgraça, do horror, que era esta situação!…
Os Portugueses são um povo brando… até que uma qualquer coisice se desenrole num transporte público! Aí, começa aquela melopaica peixeirice e, carago!, instala-se imediatamente uma revolução! Às armas! Flibusteiros! Filhos de um pegureiro energúmeno! Protozoários acelomados! Pantomineiros, bonifrates! Ancestrais de mitocôndria! E assim sucessivamente.
Por vezes, chego a crer que se vai pregar tudo à facada, ou que alguém vai sacar de um cutelo! Iniciada esta poética fase, cedi o meu lugar à minha comadre e fiquei de pé, a apreciar, com um sorriso, o apocalíptico caos que se havia instalado. Entretanto, a senhora foi falar com o motorista, que também queria mandar as suas postas de pescada, ora essa! Deixei-me ficar onde estava, e só três coisas me distraiam da captação do carismático momento: os Boban & Marko Marković Orchestra (meti um phone no ouvido), o pensamento de que o Cesário Verde foi uma espécie de guna da Literatura Portuguesa e a recordação de duas intensas trocas de olhares que tive (perdão, julgo ter tido!) com uma elegante moça, possuidora de uns olhos tão brilhantes, daqueles que fulminam a tranquilidade de um homem (é… hei-de convidá-la para tomar um café) …
E eis que, repentinamente, de bochechas descaídas e cabelinho bem lambido, surge um autêntico Mário Soares: o marido da senhora! Ele estava ligeiramente revoltado com o Mundo e só maldizia a mulher, que, segundo ele, já tinha repetido a brincadeira duas ou três vezes, e o motorista, porque estava a influenciá-la a ir a São Bento, pedir um reembolso e um novo passe. Mas ela era uma mulher (de facto era) e atirou-se (ferozmente) em subtis seduções ao marido. E ele, movido pelo parvo do cromossoma Y, deixou-se levar no voluptuoso jogo e acordaram ir até ao final daquela carreira, seguindo depois a pé até à Trindade para tratarem lá das burocracias que estavam para vir.
Seguiu-se um momento de autorrepressão: a minha amiga batia na própria testa, como se estivesse a tentar sondar a causa do esquecimento ou a origem de uma qualquer demência! Não há-de ter encontrado nada… “Jardim Botânico”; “Boa sorte, minha senhora!” (não sei se ouviu)… “Com licença…”, para um daqueles gajos do culto do corpo que estava plantado mesmo em cima da porta de saída.
Ao que parece o Tintin e o Capitão Haddock lá se safaram à mangueirada…
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