Crónica
SURREALISMO E CEREAIS
A imagem é uma criação pura do espírito. Ela não pode nascer da comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos afastadas. Quanto mais longínquas e precisas forem as afinidades entre duas realidades tornadas próximas, tanto mais forte será a imagem – maior poder emotivo e realidade poética possuirá…
Foi Pierre Reverdy, o criador do cubismo literário, que escreveu esta preciosidade. Andre Breton citou-a no seu Manifesto Surrealista de 1924.
Depois disto, pouco mais haverá a dizer sobre a invenção poética da realidade. Virá a noite, acender-se-á o candeeiro e mudará o cenário, sobrecarregando ainda mais o mistério e o inverosímil que esta composição respira. Das coisas fortuitas e inacabadas que aqui se foram aproximando, destacam-se:
– as pedras gigantes, a dignidade do candeeiro da esquina, a imaculada brancura da caleira e do tubo de queda, mais a impecável pintura ocre da parede são sinais de afirmação, de permanência e de resistência contra a ameaça das águas; as que galgam as pedras vindas da embocadura do Tejo e as que desabam dos céus quando calha de não estar assim tão azul;
– o chão torto e o piso mal cuidado, a erva e o lixo, a falta de drenagem, de passeios, de decoro dos lugares públicos, anunciam outras contrariedades. Parece que alguém quer aquilo dali para fora;
– ao fundo a imensa catedral tubular que chega a ultrapassar os oitenta metros de altura é um silo de cereais gigantesco metido numa história interminável de negócios mal esclarecidos entre o Estado, uma Comissão Liquidatária (bastante confortável com o que lhe pagam), e os habituais virtuosos do capital privado.
Não é o medo da loucura que nos vai obrigar a erguer a bandeira da imaginação a meia-haste – prometia Breton no mesmo manifesto. Por isso é que a bandeira, apesar de esfarrapada, está erguida bem no alto. Anuncia perigos para a navegação de pequenas embarcações, ventanias, mau tempo e o mar, mal encaixilhado, a roer nas cercaduras.