Crónica

Consulta Médica

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Número de utente na máquina, senha na tela. Coisa de dez ou quinze minutos. A tristeza da certeza, a moleza da doença, tudo trazia a dor de volta | Imagem: Arquivo Pessoal

Como um bom gripado, decidi trazer uma crónica sobre esse sintoma de nossa existência humana versus a bobagem da preocupação demasiada do medo de quem está gripado. Uma virose, uma tosse, dois ou três dias de febre. O texto de hoje é sobre, como diria Clarice Lispector, “as coisas que a gente só sabe quando está gripado, mas que não vale de nada saber”. É sobre hidratar-se e cobrir o peito contra o vento gelado. 

[ indico que leia esta crónica ouvindo a música eternamente, da cantora brasileira Gal Costa]

A manhã tinha a consistência de um muco gelatinoso esverdeado que se expelia das narinas entre calafrios, dores musculares e dispneia. O céu estava cinza como se estivesse a arder de febre, vertendo o suor de suas nuvens que precipitavam todo o ardor de um mau tempo. Lutar contra com apenas um chapéu de chuva para se defender era pedir para ser feito de otário. 

Um homem, envolto em roupas insuficientes, saiu de casa com aquela urgência na vaga consciência de que algo que tanto buscava lhe faltava. A ausência pesava mais do que deveria, como se fosse um símbolo secreto de tudo o que ele havia perdido ao longo dos anos: o corpo gripado.

O trajeto começou sob a promessa de um destino exato: o centro de saúde ao qual fora destinado de acordo a freguesia de sua morada. Buscava uma consulta banal, onde esperava arrancar do profissional um punhado de receitas que prometiam aliviar o seu estado apático, mas talvez nunca a melancolia que já se aninhava tomando conta de seu peito: era uma emergência. 

Após horas caminhando, se apercebeu que já se encontrava perdido. Até havia buscado no telemóvel o endereço ao qual deveria ter ido: ao desconfortável encontro não-marcado. O ícone no Google Maps apontava o tal lugar sugerido, mas lhe faltava a orientação exata para achar o passagem para a cura. O caminho no mapa parecia zombar de sua desorientação enquanto o homem tossia à seco mesmo estando totalmente ensopado. 

As pegadas de seus sapatos, feitos de um couro gasto em preto manchado, marcaram todo o percurso molhado. Pôs à mão a régua computacional que media o tempo e espaço: “estava chuvoso”, informava-lhe. Tinha muita lama nos sapatos. As suas roupas eram bem leves e, para piorar, havia esquecido de colocar aquele antigo cinto que sustentava as gangas gastas em seu corpo de homem de meia idade gripado. 

Na vitrine de uma loja qualquer, o reflexo no espelho lhe devolve uma versão opaca de si mesmo. Aquele homem que o encarava com olhos baços parecia uma metáfora em busca de sentido. “O tempo passou para você”, sussurrou a sua mente — ou talvez fosse o próprio vidro, cúmplice da chuva, na tentativa de embaça-lo ainda mais. 

E ali, por um instante, o homem se perdeu na contemplação de sua insignificância: um rio despercebido desaguou em horror. 

As ruas tornaram-se uma confusão de água e lama, tantos espelhos distorcidos de um mundo febril. A chuva não lhe caía apenas sobre os ombros; parecia deslizar para dentro de sua alma. A tristeza da certeza, a moleza da doença, tudo trazia a dor de volta. Mas logo a lembrança de que prepara a sua bolsa térmica adornava essa estupidez de insignificância. No fim, sabia que ao voltar estaria a salvo: tinha canja na geladeira. 

Caminhou mais algumas dúzias de passos, subiu e desceu ladeiras, até cruzou uns três ou quatro tascos onde, vozes abafadas, escapavam por entre as desgastadas portas das velhas construções em pedras, misturando-se ao frio do cheiro de bifanas, vinho tinto e café amargo. Uma nuvem de tabaco dançava em fuga pelo ar. 

Espirrou mais uma vez. Descido uma larga ladeira recheada de paralelepípedos — o heroísmo perpendicular do homem e seu trajeto —, já logo à esquerda, lá estava ele: um palacete com uma porta grande dupla central em tons de preto sujo acinzentado que parecia carregar o fardo de todas as mãos que ali já haviam tocado:

era, ao mesmo tempo, um fim e um começo. O homem nem bateu, logo empurrou-a entrando porta adentro sem hesitar. É o alívio de quem tá gripado versus o susto de quem não quer gripar.  

Não houve oscilação sua nem do recepcionista desconhecido. Tratava-se do abrigo da chuva que tanto havia pedido. Ao entrar, sabia que finalmente chegara ao lugar certo: o quadro com o largo pescoço de girafa — tão longo que parecia que estava a contemplar o infinito — denunciava sua chegada. Não podia ver o todo. Mas essa era a lembrança de que já não se encontrava perdido, mesmo que nunca tivesse visto onde todo esse pescoço dava. 

Número de utente no sistema da máquina, senha na tela central. Coisa de dez ou quinze minutos de consulta, enfim, o homem conseguira a receita de seus comprimidos para curar a gripe — e a certeza de que ela sempre retornará. 

 

Texto da Autoria de Ícaro Machado 



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