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Crónica

Jill Valentine

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Jill Valentine caminha pelas ruas escuras e desertas de Raccoon City, determinada a sobreviver ao caos causado pela infestação de zumbis e à perseguição implacável do terrível Nemesis.
Jill Valentine foi a primeira protagonista mulher da franquia de jogos Resident Evil | Imagem de reprodução

Ela é uma policial ficcional. Isso mesmo. Uma agente especial do Serviço de Táticas, Armamento e Especialidades em Resgates Seguros (Stars) buscando se salvar em meio a uma cidade devastada por um vírus que transformava as pessoas em mortos-vivos; ditos malditos zumbis.

A cidade era Raccoon City. Ela, a personagem, amanheceu numa espécie de galpão em chamas cercado por vários zumbis loucos por sangue. O jogo se iniciava exatamente nesse cenário descrito. E a Jill, sempre com sua boa metralhadora carregadíssima — sim, eu jogava no modo easy, claro.

Jill foi a primeira protagonista mulher da franquia de jogos Resident Evil, desenvolvida pela Capcom, a ganhar uma edição do game só para si. Isso mesmo. Ela era a única personagem disponível para jogar no game Residente Evil 3: Nemesis. Que era o meu jogo favorito. E isso era demais!

Um jogo em que o jogador era uma mulher (simulação virtual) e que lutava pra sobreviver nessa cidade sitiada. Esse mesmo jogo também inaugurou o formato Nemesis de chefão, que é quando o jogador enfrenta o “chefão” do jogo mais de uma vez. E isso acaba deixando o jogo mais difícil e eletrizante, sabe?

Eu me lembro de que era sempre muito tenso cruzar com o Nemesis, porque era sempre em lugares aleatórios; ele chegava com uma bazuca enorme, atirando e dizendo “stars!”, e depois gritava um grito de horror. A Jill ficava desesperada. E eu também.

Isso era o quê, 2001… 2, a gente tinha acabado de mudar. Mais uma vez. A gente vivia se mudando. A minha mãe gostava de mudar de casa sempre que podia. E, como a gente vivia de aluguel, isso acabava facilitando as muitas mudanças que enfrentamos durante a vida. Em muitos aspectos.

Lembro de já ter mudado umas três vezes nessa época. E eu tinha, sei lá, 9 anos de idade, já? Sim, terceira série. Inclusive, lembro de a gente ter mudado no finalzinho do ano — isso, era dois mil e um, mesmo, finalzinho —, não teve nem tempo de mudar de escola. Então, com a mudança, eu ia sozinho de ônibus todos os dias a escola que ficava em outro distritozinho. Eu me sentia a própria Jill, de boas por aí, desbravando o mundo sozinho.

Lembro de dois amigos que a nova mudança me deu. Mais novos amigos. Isso, claro, depois de um tempo. Já tinha passado a Copa de 2002, que inclusive foi a copa em que o Brasil se tornou penta, isso no Japão. Eu me lembro porque os jogos eram pela manhã e, como eu estudava nesse horário, não tinha aula em dias de jogos do Brasil.

Os meus dois amigos, um é o Cristian, um menino negro, cabelão grande como o meu —meu parça — e o outro se chama Andrei. Cristian era filho de uma amiga de mamãe. Eles moravam na mesma rua que eu, só que já era quase na descida da praia.

A casa de Andrei ficava logo ao lado da minha, e de frente para a de Cristian. Andre morava numa casona de dois andares. Na verdade — corrigindo — hoje a casa dele é quase um quarteirão de tamanho. A família dele comprou a casa que morei e juntou tudo. O enlace era que a família de Andrei morava oficialmente em Fortaleza, a mãe dele já devia estar envolvida com política nessa época, se não me engano. E, por trás da casa do Andrei, ficava a casa dos avós dele. Era uma casa desabitada e estava sempre fechada. Era lá que nós três brincávamos.

A gente fingia que éramos jogadores de Resident Evil. Melhor, a gente fingia estar dentro do jogo. Vivendo ele como uma realidade virtual. Nós três éramos muito viciados nesse jogo. Demais até. O meu irmão até tinha um Playstation, inclusive, era nele que a gente jogava antes, mas daí aconteceu de o play ‘dar pau’ (quebrar).

Então, eu me lembro que Andrei pagava na locadora de videogame para a gente jogar. Ele pagava de horas, e eu ficava lá, jogando…. Porque assim, nem ele, nem Cristian sabiam jogar Resident. Eles ficavam me assistindo enquanto eu passava de tudo. E Resident Evil é um jogo longo.

Durava horas. Era tão complexo que a gente salvava o jogo no memory card da locadora e jogava à prestação. Andrei pagava de boas. Dinheiro não era problema para a família dele. Sempre tinha chocolates na casa dele. E tipo, ele tinha o dinheiro e eu sabia jogar. Simples assim.

Eu tinha aprendido a jogar vendo o meu irmão mais velho jogar. Lembro-me de passar noites e noites assistindo no play. Ele zerou Resident Evil, Silent Hill, Metal Gear Solid, Tomb Raider… e eu vibrava só em assistir. Era massa. Então, eu fui e aprendi a jogar também só em ver ele zerar os jogos.

Jill era uma personagem muito forte. Ela tinha que enfrentar tudo sozinha. Tu pensa aí, ela já tinha escapado da casa/laboratório/floresta, que é o cenário do primeiro jogo. Por que assim, o Resident Evil 3: Nêmesis é ambientalizado um pouco depois — cronologicamente — do primeiro Resident, e meio que concomitante com o segundo, também situado na cidade Raccoon City, mas em alguns locais distintos, com outros personagens… Enfim, é uma grande história.

A verdade é que eu sempre quis ser a Jill Valentine. Sério. E isso se perpetuou por muito tempo. Sei lá. Dizem que Freud fala que o inconsciente guarda um reflexo oculto de você. Principalmente da infância. Para ele, a infância é uma das fases mais importantes para a formação do eu. E que, às vezes, ou isso — as lembranças — ficam lá, recalcadas no inconsciente; ou vem à tona de uma forma muito expressiva. Não sei.

Só sei que a primeira vez que eu me ‘vesti de mulher’ — e isso foi em um concurso de miss gay, tinhas uns 16 anos, acredita? GRIIIITOOO —, então, na primeira vez que eu me montei (termo vulgar para o ato de travestir-se), o meu nome era Jill. Jill Dalí, melhor referência rsrsrs.

A casa dos avós de Andrei se tornava a própria Racoon City. Era certa a diversão. A gente bolava os códigos, montava as estratégias. Construíamos o jogo todo: armas, plantas, que no jogo era como uma espécie de cura (life) e que mantinha a Jill viva no jogo.

Então, na casa dos avós de Andrei, tinha que ter também. A gente rodava o quintal da casa toda. Eu, claro, era a Jill. Jill Valentine. E tudo era de boas. Cristian era um zumbi e Andrei era Nêmesis. Eu lembro que, nas férias, após ir jogar na locadora o game, a gente passava a tarde toda brincando lá. Brincando de Resident Evil. E nunca foi um problema para eles eu ser a Jill.

A gente se divertia muito.

 

*Crónica disponível no livro Criança Viada(2021) 

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