Devaneios
O INFERNO SOMOS NÓS OU SÃO OS OUTROS?
Desde pequenos, somos postos em contacto com dois conceitos que irão acompanhar toda a nossa vida. Entre muitos outros, é claro, mas que se revestem de particular relevância: o Bem e o Mal (por oposição obrigatória, a que todas as conceptualizações estão sujeitas).
Até hoje conhecemos várias propostas de abordagem conceptual, entre as quais se distinguem as mais marketizadas e enraizadas na nossa civilização: as religiosas, morais, éticas, filosóficas, poéticas e/ou as mais subjetivas como as egoístas, altruístas, circunstanciais (tentativas de objetivação), narcísicas, teorizações coletivas e grupais. Estas últimas são baseadas em efeitos de bem maior, benefício comum, bem-estar social, deontologia humanitária a uma escala civilizacional e evolucionista.
Podia refletir sobre a proposta homogeneizadora religiosa que indica um mesmo caminho a seis biliões de almas únicas e distintas entre si, ao invés de uma proposta de encontro individual, de cada sujeito com a existência ou acerca da inflexibilidade e hipocrisia das teorias moralistas. De facto, estas nunca são adaptáveis, mas antes adaptantes do sujeito ao comportamento esperado pelos que o rodeiam, ou relativamente à insustentável leveza das elaborações poéticas.
Contudo, tal como Siddartha disse ao Buda Gotama – que apesar de estimar a sua filosofia de vida, teria ele próprio, partindo do mesmo ventre humano, de encontrar a sua ética existencial – também eu senti necessidade de encontrar o meu entendimento acerca destes conceitos (fundamentado no de muitos outros, vivos e que já viveram) e é isso que proponho a cada um. O mesmo que a mim mesmo por não ser capaz de melhor, nem de pior e considerar essa a perspectiva mais honesta, pelo menos.
Assim, hoje acredito que quase todo o Mal está relacionado com a indiferença e todo ele tem como base alguma indiferença, ainda que, por vezes, seja relativa e direcionada ao próprio e às suas necessidades, nas maldades que cada um inflige a si mesmo, direta ou indiretamente.
No reverso da medalha, o Bem tem as suas origens na capacidade de nos colocarmos na posição do Outro, de não lhe sermos indiferentes. Assim, acredito que para praticar o bem o sujeito não pode ser indiferente a si próprio, pois só ao ser auto-consciente é capaz de dar conta de si mesmo, o que possibilitará dar conta dos outros.
Nos atos de maldade podemos dar-nos conta de que o sujeito que os pratica não terá sido capaz de ter estima, empatia, simpatia, pelo sujeito alvo da sua maldade. Não foi capaz de se identificar positiva e construtivamente com ele e, acima de tudo, de se colocar no seu lugar. Antes pelo contrário, fez uma identificação negativa e destrutiva e projetou nele tudo que odeia no mundo e em si próprio. Assim, maltrata esse outro que não vê como um potencial “eu” e não o imagina como sujeito da mesma constituição psíquica básica, com os mesmos desejos, afetos e medos. Desse modo, não se dando conta de si próprio, deposita sentimentos de inferioridade, humilhação, raiva, ódio e revolta nos ‘objetos’ que maltrata e lhe dá prazer, num sentimento perverso de legitimidade.
Existe uma posição de desidentificação pressuposta nesta maldade. É mau quem trata os outros de uma forma da qual não gostava de ser tratado ou de uma forma desajustada e injusta da qual acreditamos que devia poupar o outro, abstendo-se das suas ações. Todos nós somos animais e, por isso, somos capazes das maiores barbaridades. Quem maltrata ou agride o próximo não lhe reconhece a mesma dignidade que reclama para si próprio, ou seja, coloca-se numa posição de superioridade e desprezo face ou outro, ao qual não reconhece semelhança, paridade ou equidade.
No reverso da medalha temos o Bem, a bondade ou os bons tratos e não podemos deixar de notar que, quem os pratica, trata os outros como acredita que eles gostavam de ser tratados, ou como se tratariam a si próprios, ou como se tratam a si mesmos, ou como o próprio se trata, pelo menos. Deste modo, conseguimos inferir que são capazes de compreender o outro e as suas necessidades, porque o olham não como um “tu” distante e diferente, mas antes como um “eu”. Não vê no outro um alvo a suprimir, a abater, a maltratar ou a humilhar, mas antes digno da sua dignidade.
Na medida em que cada sujeito é, em parte, aquilo que os outros lhe permitem ser e noutra parte aquilo que, em toda a sua contingência circunstancial, este se permite ser, também alguns seres humanos são bons porque lhes permitiram (e eles próprios se permitiram) ser dessa forma e outros são maus porque nunca lhes foi permitido ser doutra forma, ou eles próprios nunca o desejaram verdadeiramente.
Para mim, quase numa relação linear, as pessoas mais agressivas são também as que foram vítimas dos piores maus tratos. Nunca conhecendo outro afeto e tendo de aceitar esse afeto agressivo, mesmo como forma única de responderem e sobreviverem num ambiente hostil, essas pessoas nunca aprenderam a comportar-se de outra forma, porque não foi doutra forma, mas dessa, que os outros se comportaram com eles. Os filhos do ódio aprendem a odiar, os filhos da dor a bater, e os filhos do amor a amar. Para que cada um seja bom ou para poder ser ele próprio, no encontro com o sonho que sonhou para si, é necessário que existam condições que o permitam. E, sem arrogância, essas condições são as pessoas que nos rodeiam e nós mesmos. Assim sendo, o inferno somos nós? O inferno são os outros? Serão os outros para nós e nós para os outros?