Devaneios

OBRIGAÇÃO MORAL

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Este fim de semana fui fazer voluntariado para o Banco Alimentar, como é costume todos os anos. Este ano não fui ajudar para o armazém, mas para um Pingo Doce distribuir as famosas saquinhas, o que se revelou como sendo algo digno de um estudo sociológico. Basicamente, há dois tipos de pessoas: aquelas que dividem as pessoas em grupos e as que não dividem as pessoas em grupos. Eu pertenço ao primeiro grupo. Na hora e meia (eu sei que não é muito, mas foi aquilo que pude disponibilizar do meu tempo) ouvi de tudo. Aqui fica o relato e a meditação sobre o que aconteceu.

Quando chegámos (obviamente não fui sozinho) ao Pingo Doce vi que íamos substituir um grupo de crianças do 3º ano de escolaridade. Não sei quanto a vós, mas para mim crianças a fazer voluntariado é a segunda coisa mais fofa do mundo atrás de labradores que são cães-guia. Logo aí vi que ia ser uma recolha muito interessante. Fomos logo confrontados com um dos tipos de doadores: as pessoas que contribuem para o Banco Alimentar porque estão a ser pressionadas moralmente por crianças fofas. Não tenho nenhum problema com este tipo de pessoas, porque geralmente até deixam um saco cheio, tirando o facto de que o fazem pelas razões erradas. Doar não devia ser um gratificante moral (sim, porque muitas destas pessoas let´s face it não iriam dar nada se não estivesse um grupo de crianças à porta…) mas sim algo que fazemos porque somos seres dotados de empatia e que sabem que, apesar de tudo o que possa estar a correr mal de momento nas nossas vidas, não somos confrontados com a necessidade de recorrer a instituições de solidariedade social para alimentar a nossa família. Ficando isto bem patente, ouvir “Preferia ter entregue o saco às meninas que estavam aqui há bocado” foi um bocadinho difícil de engolir sem levar uma resposta bastante chateada da minha parte.

Algo de interessante notar foi a profusão de pessoas que, conscientemente, desvia totalmente o olhar dos voluntários como, talvez, se não lhes reconhecer a existência não esteja a fazer algo de errado. That being said, não acho que não dar nada para o Banco Alimentar seja errado, mas pelo  menos tenham a coragem de dizer ‘Não’ às pessoas… O tipo de pessoas mais frequente é o ‘Já dei hoje’. A primeira coisa que me vem à cabeça quando ouço isto é o slogan “E tu, já comeste fruta hoje?”, como se doar fosse uma atividade que pudesse ser feita exclusivamente uma vez por dia. Agora, falando verdade, muitas vezes o “Já dei hoje” é mais um “Eu não quero dar, mas não te quero dizer que não quero dar porque isso parece mal, portanto vou mentir…”. Também há aquele tipo de pessoas que faz a tournée nacional dos supermercados “Eu já dei naquele Pingo Doce ali acima” ou ainda o turista dos supermercados “Ah, eu não vim fazer compras”. Falas verdade? Vieste a um supermercado apreciar as montras? Ou tens um fetiche esquisito com donas de casa a pegar em pacotes de manteiga?

Posta a verdade em cima da mesa, há pessoas que surpreendem… Aqueles que dizem ‘Não’, por exemplo surpreendem-me pela positiva porque é preciso ter os tomates no sítio para dizer ‘não’ a alguém que está a recolher comida para pessoas desfavorecidas; ou ainda aqueles que rejeitam ao início, mas acabam por trazer alguma coisa. Ou os que levam as sacas, mas depois as enfiam na carteira ou levam as compras para o carro delas (esses pela negativa, obviamente), porque sentem a pressão de ajudar mas preferem recorrer à mentira para se livrarem da obrigação moral que subscreveram ao aceitar a saquinha.

Sim, porque ao aceitar a saquinha estamos a subscrever um contrato-promessa social. Pode não parecer nada, mas é tudo. As saquinhas também custam dinheiro, dinheiro esse que podia ser utilizado para comprar mais pacotes de arroz ou massa para alimentar famílias em que os pais não comem para poder dar o jantar aos filhos (senão já sabem que só almoçam na escola…), ou então idosos que vivem sozinhos porque os filhos os abandonaram (abandonar é uma palavra forte, mas é a verdade), e muitas outras situações de pobreza extrema que estamos a ignorar quando ignoramos o voluntário que pede com um sorriso na boca (muitas vezes seguro apenas pela convicção num mundo mais justo) se quer contribuir para tornar este mundo um mundo melhor. Portanto das duas uma, ou sim ou não. Mas que seja um sim e um não fortes, justificados, sem medo, sem desculpas, sem tretas…

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