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Artigo de Opinião

A FORMAÇÃO MÉDICA ESTÁ DOENTE

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Em Portugal, há mitos que se criam e são muito difíceis de vencer. Quando estamos a falar do D. Sebastião e do nevoeiro, a questão não é grave – o imaginário popular até tem a sua graça, e dá origem a boas obras de literatura, pintura ou música. Quando se trata de mitos que prejudicam a saúde das pessoas, é preciso resolver o assunto de forma rápida e eficaz. Foi isso que a ANEM (Associação Nacional de Estudantes de Medicina) veio fazer, com um profissionalismo extraordinário, através da sua campanha #pormedicosdequalidade, levada a cabo nas redes sociais. O mito da falta de médicos tem de acabar, sob pena de destruirmos o SNS (Sistema Nacional de Saúde) e desperdiçarmos recursos económicos e humanos a iniciar a formação de médicos que não conseguimos acabar de formar nem acomodar no nosso país.

Somos um dos países da OCDE com maior número de médicos por habitante e com maior número de estudantes de medicina por habitante. Então, como é possível termos falta de médicos? A resposta é simples: não temos; estão é mal distribuídos. Se temos mais médicos por habitante que países como a Alemanha, Holanda ou Bélgica, e reconhecemos que estes países têm bons serviços nacionais de saúde, este argumento fica derrotado logo à partida.

O facto de termos um número de estudantes de medicina extremamente elevado, que é bem maior do que aquele que seria necessário para manter estável o número de médicos por habitante, poderia ser visto como um não-problema, já que é difícil conceber como pode haver pessoas que cuidam da nossa saúde “a mais”. Espero conseguir sensibilizar o caro leitor para a problemática.

Uma consequência que se revela imediatamente é a deterioração da qualidade da formação médica. A medicina é uma área que necessita de muitas horas de treino para se poder dizer dominada. Não há possibilidade de aprender por tentativa e erro, já que cada erro pode significar uma vida perdida. Se houver, como se verifica em algumas escolas médicas portuguesas, 18 estudantes a cargo de um só professor, como é sequer plausível que a formação obtida está a ser de qualidade? Como consegue o professor perceber se o estudante é capaz de realizar um exame físico, desenvolver uma hipótese diagnóstica ou aplicar a terapêutica correta? As ciências exatas podem ser avaliadas com uma data de problemas teóricos resolvidos num espaço fechado, em silêncio, com uma caneta e um lápis; a medicina precisa de horas no terreno e de um ambiente de avaliação contínuo.

Este é um problema que também afeta o doente e, portanto, utilizador dos hospitais universitários. O problema começa pela privacidade – não é bom ter 10 pessoas à nossa volta, para além do seu médico e do enfermeiro, a fazer-nos perguntas e a examinar-nos. Não é agradável estar internado e ter de receber, três ou quatro vezes por dia, uma visita de estudantes em aula que vão praticar a auscultação, a palpação abdominal ou o exame ginecológico. E, se acha que isto é mau, pense na consequência a longo prazo. Se hoje há médicos formados que estão lá para entrar em cena quando os estudantes falham, amanhã serão os estudantes que estão a ter uma má formação a serem os médicos. Certamente que o excesso de médicos já está a assemelhar-se mais a um problema.

Passemos agora à parte dos números, que tanto tem orientado o desenho dos Orçamentos de Estado. Sendo este problema tão grave, só pode estar sem resolução por razões económico-financeiras, certo? Errado. Todos os anos o Estado perde dinheiro com a formação de médicos dos quais não precisa, e isso tem implicações a vários níveis. Em primeiro lugar, a própria formação médica é muito cara: o curso é longo, obriga à utilização de equipamentos dispendiosos e causa entropia nos hospitais universitários. Depois de acabado o mestrado, os mestres em medicina têm de fazer a sua especialização, sem a qual se tornam médicos indiferenciados e ficam impedidos de exercer. No último ano, 114 mestres em medicina ficaram sem acesso a uma especialidade, por falta de capacidade formativa nos hospitais. O que podem fazer estes 114? Ou esperam pelo concurso do ano seguinte (e pioram as condições da próxima “fornada”, que passará, provavelmente, a ter mais de 200 estudantes sem acesso à especialidade), ou emigram, servindo como prendas para os serviços nacionais de saúde de outros países como a Alemanha ou o Reino Unido – no fundo, é uma espécie de caridade que o Governo de Portugal pratica. De qualquer das formas, o Estado perde o dinheiro que investiu na sua formação, já para não falar no impacto que isto tem ao nível do desemprego.

Por ser estudante de medicina e, portanto, parte interessada, os mais céticos poderão estar já a preparar-se para me descartar com um “lá estão estes corporativistas a falar”. Sim, há muito corporativismo no mundo da medicina e esse é um problema que é preciso combater. Há poucos médicos em algumas especialidades e isso levanta suspeitas quanto à capacidade formativa definida por alguns colégios de especialidade da Ordem dos Médicos, que poderá ser inferior à real. Mas isso não significa que o problema do excesso de médicos seja menor, pelo contrário: se cada setor fizer o seu papel de forma competente, mais evidentes se tornam os abusos dos outros setores, pela discrepância que irão apresentar.

Este problema é resolvido com a diminuição dos numerus clausus para os cursos de medicina. A ANEM deixa propostas concretas que vão no sentido de reduzir gradualmente o número de estudantes do contingente normal e de acabar com o concurso especial para licenciados, que, note-se, não ficam impedidos de concorrer, apenas deixam de ser discriminados positivamente relativamente aos outros estudantes. Recomendo uma visita ao excelente site http://qualidadeformativa.anem.pt/, onde poderão encontrar mais informação sobre o tema. Este é um assunto que prejudica a saúde de todos nós e que tem uma resolução relativamente simples. Aplique-se a terapêutica, enquanto o doente ainda não corre perigo de morte.

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