Artigo de Opinião
EDITORIAL: O JOÃO VIAJA NO AUTOCARRO QUE O TRANSPORTA
O João viaja no autocarro que o transporta desde Gondomar até à baixa do Porto. Deverá chegar um pouco depois das onze da noite à zona da “movida”, onde espera encontrar-se com a Manuela, que, à mesma hora vem do outro lado de Gaia. É natural que o Tiago e a Cristina apanhem uma boleia e se encontrem com eles vindos da Maia. À sua espera estarão a Zita e a Joana que vieram de metro desde Matosinhos. Quando o João se encontrar com os amigos, já as ruas, as praças, os bares e os cafés da baixa estarão cheios. O João sabe que vai beber a primeira cerveja na loja onde o seu pai, quando trabalhava, vendia tecidos e fazendas, na rua onde a mãe da sua amiga Manuela era empregada de escritório e onde o avô da Zita tinha um pequeno negócio. O pai do Tiago morou ali perto, na zona da Vitória, e ainda hoje por lá se fala dele como organizador de festas e bailaricos. A sua avó, modista afamada, tinha também por ali o seu ateliê. Os pais da Cristina conheceram-se ali, ele morava na rua de cima, ela na rua de baixo, namoriscaram por aquelas ruas, trocaram nos seus recantos, às escondidas, os primeiros beijos. A Joana foi das últimas a sair. Quando nasceu a sua irmã mais nova a casa tornou-se pequena e maior do que o orçamento; partiu com os pais, deixando para trás os primeiros amigos.
O desafio para dirigir um número especial do JUP dedicado ao Porto, é um desafio para um jornal centrado na cidade das pessoas. E é também um desafio para lembrar a história do João, da Manuela, da Cristina, do Tiago, da Zita e da Joana, que vivem a cidade como uma segunda geração de emigrantes que vão periodicamente à festa da aldeia onde os pais nasceram. Só que o movimento a que eles dão vida acaba por constituir um novo modelo de socialização, que tem permitido à cidade ganhar vida em horários e períodos onde ameaçava esmorecer, numa imagem a lembrar Veneza cheia de turistas e vida durante o dia e deserta e decadente a partir do fim da tarde, quando se transforma num mero cenário, como se a peça já tivesse acabado e as luzes do palco começassem a apagar.
Falar da cidade das pessoas neste Porto do início do século XXI é falar deles e dos que insistem, dos que resistem, dos que cá estudam e trabalham e lhe dão vida, dos que cá vivem e lhe dão sentido, dos que para cá vieram e a adoptaram como sua, dos que de cá saíram mas continuam a sentir o Porto como a sua cidade. Dos que se preocupam com destruição de uma identidade colectiva e se empenham em retomar a identidade da cidade. Vamos falar com as pessoas, numa caminhada que nos leva desde as ruas da Victória, onde encontramos o José Brochado, homem de histórias várias e profunda ligação à sua cidade natal, até à poesia de Ana Luísa Amaral que trouxe para o Porto a sua vida e a sua arte maior. Pelo caminho vamos espreitando lugares e registando emoções, tanto quanto nos permite um percurso de vinte páginas. Vamos visitar uma fábrica de ideias e acções, a Fábrica da Rua da Alegria, um caldeirão de jovens artistas, onde se resiste, se cria e produz aquilo que melhor representa a renovação do tecido criativo da cidade. Vamos cruzar olhares com alguns daqueles que imigraram para a cidade onde tantos estão de partida. Daí, o encontro com a Ianina Khmelik, tendo o som do seu violino em fundo, formal e elegante na orquestra ou descontraído, mas igualmente belo e rigoroso, nos outros projectos; a Claire Binyon e a sua ligação ao ensino de artes cénicas e à direcção artística da “Sinfonia Erasmus”, performance multidisciplinar em 5 andamentos criada com a participação da comunidade de estudantes estrangeiros da cidade do Porto; ou o Bernard Despomadères, há muito aqui radicado e a quem a cidade tanto deve como programador artístico e apoiante activo das suas estruturas culturais. Ao Rui Spranger e ao Álvaro Domingues fomos buscar algum do pensamento que têm produzido sobre a cidade.
Por fim, vamos ilustrar tudo isto. Como quem pinta os muros da cidade. Seja com gritos ou poemas. Ou com humor.
A proposta da edição do JUP dedicada ao Porto aqui está. O jornal é vosso. Eu só vim aqui dar umas ideias.