Artigo de Opinião

SOB(RE) LITERATURA

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Na sequência de outras produções críticas que deixo aqui e aqui para quem as quiser consultar, ensaiarei sobre os problemas maiores da literatura portuguesa contemporânea e procurarei buscar a sua solução teórica.

Escreve-se muito hoje. Escreve-se também muito mal. Todo o texto é igual a todo o texto. Não me refiro somente aos que, alheios a qualquer compêndio gramatical, registam aos tropeções um assunto sem interesse, mas indico também, e principalmente, os que pensam que são poetas/romancistas apenas por seguirem à risca o código de uma gramática que pensam ser correta e legisladora – na vez de mera diretriz de orientação. Aponto o dedo contundente à minha própria geração de seres escreventes.

A escrita começou por ser encarada enquanto sinal de poder, uma vez que é, em essência, um instrumento para a perpetuidade, um mecanismo de defesa contra a finitude física do próprio ser humano. O que resulta do processo de caligrafar – e, mais tarde, da imprensa e, mais tarde ainda, da tecnologia virtual – i. e., o manuscrito sobrevive ao seu escriba. Deste modo, o seu pensamento – ou daquele que o controla – permanece, tornando-se memória e história de uma cultura.

Nos tempos de hoje, este poder é percebido de modo extremo. Com o nascimento da escrita aristocrática – de cujo exemplo próximo a nós temporalmente é a escrita modernista de um Mário de Sá-Carneiro ou, maioritariamente, de um Fernando Pessoa – exacerba-se a ideia de que aquele que escreve é, em certa medida, um individuo hiperintelectual. Deste feito, o produto textual perde qualidade, objeto simples e simplificador da realidade humana.

Referido aquele que é considerado um dos poetas mais importantes da literatura portuguesa, o supra-Camões, convém reparar que este é de leitura obrigatória – não me refiro apenas ao programa de estudos da língua portuguesa do ensino secundário, mas ao facto de ser uma figura incontornável da poesia portuguesa. Da crescente notoriedade do autor começam a surgir textos apócrifos em que a hipertrofia do eu é o motivo central e o tu se desdobra, também ele, num eu narcísico, mas simplista.

Aponto novamente o dedo à massificação da escrita e, acrescento ainda a leitura para o entretenimento. Não estou a tentar ridicularizar o prazer do texto, mas pretendo com isto dizer que já não se acredita numa literatura que tenha a capacidade de mostrar possibilidades de mundo. Toda a literatura detém dimensões pedagógica e didática e todo o texto é fruto de um ato demiúrgico tanto do ponto de vista da criação de universos como da construção de uma linguagem singular. A crescente falta de espírito crítico impede a consciencialização de que escrever não é somente o destilar de umas frases cliché que nos revelam uma superfície lisa que tapa – ou quer esquecer, anestesiar o sujeito escrevente de – uma profundidade complexa. Não há saber nem na nem pela linguagem.

Muito menos sabor na linguagem. Vê-se muita gente que redige um textinho e o publica logo em seguida, olvidando que o primeiro crítico do nosso trabalho somos nós próprios. Já não se escreve pelo prazer de escrever, pela necessidade de autoconhecimento ou para a comunicação com outrem. Hoje não há quem experimente a linguagem, quem aprimore uma técnica e, consequentemente, deixa de ver-se autenticidade e individualidade nas demais publicações. A sociedade do imediatismo dita que para se ser um intelectual de qualidade tem de se publicar pelo menos x quantia de romances por y espaço de tempo.

Por fim, julgo que a falta de importância e visibilidade que se dá às Antiguidades Clássicas no ensino aumenta o desdém dos que leem, sendo as raízes das literaturas ocidental e oriental, assim como a origem de toda a cultura, veladas à vista de todos. A musicalidade perde-se, o ritmo que somos cai na desimportância e literatura é encarada como sendo o livro, sem que se tenha em conta o oral e o marginal.

Em suma, autenticidade, autonomia, sinceridade para connosco próprios, individualidade, uma busca honesta pelo outro, experimentalismo linguístico e espírito crítico são os ingredientes que se me figuram indispensáveis ao artista que o é realmente, seja numa ou noutra técnicas que este queira dominar. Para os que apenas o pretendem ser – em ambos os sentidos do verbo pretender -, a literatura inclusa do remédio para a infraliteratura é simultaneamente um veneno.

Sobre literatura nunca estaremos completamente conversados. Sob literatura nunca haverá conversa exequível.

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