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Artigo de Opinião

Afinal, o teatro

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Uma das memórias mais longínquas que tenho da minha experiência com o teatro é a peça Gisberta de Eduardo Gaspar, estreada em 2013. Lembro-me vividamente – não da peça em si, que apenas me surge à memória de modo fragmentário e difuso, mas – da impressão forte que senti durante e no final do espetáculo. Através de um monólogo doloroso, descobria, de forma bastante consciente, não só o pathos que este meio artístico pode provocar, mas também, de maneira um pouco mais subcutânea, arte enquanto mimesis, representação da realidade.

A minha única vivência em teatro, nos palcos, – naquela que foi uma peça redigida e encenada por quem vos escreve estas letras – ensinou-me a capacidade mnemónica que achava não me ser possível e que era uma faculdade tão querida e importante para esses homens antigos.

Exemplo de um texto-performance-memória é ainda Baleizão – O Valor da Memória de Aldara Bizarro e Miguel Horta, peça completamente original, cujos pontos de partida temáticos são as memórias afetiva, pessoal e coletiva, bem como os seus núcleos de contacto e as suas disparidades. A finalidade última desta performance é a da criação de um simulacro do ato mental de recordar. Tamanha empresa passa pelo som, em certa medida, visto que as gravações colocadas durante o espetáculo servem o propósito não somente de ilustrar o que a personagem ouviu, mas de provocar um jogo lúdico em que o espectador vivencia a própria memória da personagem. A implantação dos sons, das fotografias, dos lençóis, do texto, na memória pessoal de cada espectador – que, em conjunto formam uma memória coletiva do drama – fazem da performance teatral um autêntico monumento em que ver é simultaneamente contemplar um objeto artístico e gravar na mente a perceção de uma memória modelada pelas dimensões artística e estética. Por fim, esta será novamente modulada pela nossa capacidade de manutenção e de alteração das recordações, transformando-se, a peça de teatro, em memória afetiva do próprio espectador. Eis do que me recordo: novamente aquela impressão de ostranenie quando um dos personagens diz “Nunca mais faço uma peça contigo”.

Antes disso, uma passagem pelo teatro isabelino, com Christopher Marlowe e com especial ênfase em Shakespeare, já somente em papel e no idioma de origem, depois de ter lido Romeu e Julieta numa tradução que deixa a desejar. A obra de Shakespeare tornara-se, então, para mim, um ponto de referência, embora não tenha contactado com encenações até bem tarde, já em confinamento e em língua portuguesa.

Macbeth em Português, por Nuno Carinhas e encenado no Teatro Nacional de São João (TNSJ) revela não só o génio de Shakespeare como também a capacidade que o teatro tem de ser versátil, adaptando-se o texto e o cenário conforme se deseja empregar mais historicidade ou mais contemporaneidade a uma peça. Por outras palavras, o teatro é pontual, na medida em que a performance é única – a não ser que a filmemos para recordação posterior –, i. e., irrepetível. É ainda universal, na medida em que qualquer texto tem uma potencialidade inesgotável de adaptações. O mesmo texto gera inúmeras possibilidades de reescrita performativa, salvo quando as didascálias não o permitem. Exemplo disso poderá ser a Antígona, peça tão antiga – passe-se a expressão –, mas que deu azo a uma adaptação em stop motion bem coerente dos pontos de vista estético e estilístico contemporâneos. Uma escolha bem poética levada a cabo, na encenação de Macbeth, e que demonstra esse caráter maleável do teatro, é a inversão histórica de colocar mulheres na interpretação de diversos papéis masculinos.

O teatro é um laboratório da experiência humana e seu método é a observação. Ver, neste caso, não está longe do que o que os gregos consideravam ser o paradigma de conhecimento. Teatro é presença. Aprendemos por imitação, já dizia Aristóteles, e talvez por isso os autores isabelinos não matavam os seus reis em cena.

Teatro é presença, é corporeidade. Os corpos contam histórias e ninguém melhor do que Almada para nos mostrar isso. Apaixonado pela Commedia dell’Arte, José de Almada Negreiros transporta consigo o teatro itinerante, remodelando-o, rejuvenescendo-o. O fim de um texto, de uma peça dramática é o começo dos seguintes. Não podendo ter acesso às performances almadinas, tive o privilégio de poder, ao menos, ver as adaptações que surgiram do contacto e do estudo da sua obra, com especial carinho por Al mada nada de Ricardo Pais, outro exemplo de como o trabalho artístico em mãos terceiras, a quem o teatro permite originalidade e espaço de criação, é palco para a novidade. Al mada nada é uma síntese não só da obra teatral mais importante de Almada Negreiros, como também da sua obra global, da obra-ensemble que reúne literatura, teatro, música, desenho, dança e poesia.

Teatro é visualidade, é presença, é corporeidade. O cinema não nos traz os dois últimos. Afinal, o teatro está vivo, de saúde e recomenda-se. Em jeito de celebração, fica aqui o meu apelo. Seja ele antigo, moderno ou contemporâneo, itinerante ou não, com fins litúrgicos, ritualísticos, religiosos ou de entretenimento, representação mimética da realidade ou criação poética; seja ele romântico, realista, naturalista, simbolista, renascentista ou barroco, seja ele popular ou tradicional, greco-romano ou judaico-cristão, de caráter teológico, cosmogónico, mítico ou não, de arquitetura isabelina ou vitruviana, com ou sem máscaras, respeitante da unidade de ação, de tempo e de espaço ou não, seja ele burguês, social-revolucionário ou lírico, documental ou experimental, em vaudeville ou ópera, seja ele ballet russe ou commedia dell’arte, seja temático ou a-temático, de repertório ou não, a lição é: ide ao teatro.

Clara Maria Silva.

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