Connect with us

Artigo de Opinião

The Hunger Game Society

Published

on

Existem tantas maneiras de procrastinar durante o confinamento. Se eu alguma vez achei que não era criativo, estava errado. Contudo, hoje não venho falar sobre isso, mas sim, sobre uma visão que tive enquanto praticava a arte de procrastinar.

E tudo aconteceu nestas “férias” da Páscoa. Repararam nas aspas? Foi intencional. Acho que para os professores universitários, férias é sinónimo de mais tempo para escrever relatórios. E então lá estava eu, a usufruir da técnica de procrastinar mais antiga do livro, a famosa e eficaz “hora de ver um filme”. Tudo para adiar a fila enorme de recensões críticas, relatórios, e capítulos por ler que me aguardavam. 15 minutos e meia tigela de cereais depois, saturado de não saber o que ver, decidi tornar a assistir o blockbuster de Hollywood “The Hunger Games”.

E embora sendo este filme uma ficção distópica, não deixa de dar a sua crítica à nossa sociedade. E como faço quase sempre após o fim de um filme, gosto de refletir sobre a mensagem que o próprio tenta passar. E foi nesse preciso momento que tive uma mudança de perspetiva. Que talvez, e só talvez, nós estivéssemos a viver numa sociedade igual à de Katniss Everdeen.

É como aquela imagem famosa criada por Ludwig Wittgenstein de um coelho e/ou de um pato, dependendo da nossa perspetiva. É como se toda a tua vida estivesses a olhar para o Coelho da Páscoa e subitamente ele se tornasse num Pato da Páscoa. E nada torna a ser o que era.

Chegam a ser bastante óbvias certas semelhanças entre o nosso mundo e o mundo ao torno do Capitólio de Panem. Algumas dessas são, por exemplo, a videovigilância do Estado para com os seus cidadãos, o reprimir de certas informações, a manipulação da opinião pública e a influência massiva que os média têm sobre as populações. A única diferença dá-se no facto de que o povo do Capitólio de Panem está bem ciente da sua situação política, enquanto por estas bandas, nós preferimos agarrar-nos à ideia de que vivemos numa sociedade livre.

Mas foi preciso rever o filme durante o confinamento para me aperceber de certos aspetos que outrora passavam por despercebidos. Sendo um deles a polarização das classes sociais. Temos vindo a presenciar duas classes sociais durante a pandemia. Os que lucram com ela e os que lutam com as dificuldades causadas por ela. Já no filme é parecido. De um lado temos a classe oprimida, e do outro, a classe opressora. Já para não falar das celebridades, com aqueles trajes extravagantes, que se agarram à classe opressora com unhas e dentes. Eles têm como dever, entreter a classe oprimida, e em troca usufruem de uma liberdade condicionada. Lembram-se da Effie Trinket? Aquela mulher que se veste coloridamente e que “ensina” a protagonista como agir publicamente. A Effie faz-me lembrar a Cristina Ferreira. E enquanto nós não podemos passar a Páscoa com os nossos familiares devido ao confinamento e aos decretos de lei, ela e a sua turminha preparam um almoço com convidados para depois o saborearem em direto, esfregando na cara dos portugueses que existe certos privilégios que nem todos têm.

E quando falamos em confinamento, não podemos deixar de falar nas restrições de circulação entre concelhos. E para o bem da minha argumentação, temos de facto no filme uma política semelhante. Na sociedade totalitária do Capitólio de Panem, o acesso aos diferentes distritos é garantido através do aval do Capitólio. A liberdade de circulação é um conceito inexistente na sociedade de Katniss Everdeen e uma realidade em vias de extinção na nossa.

Por fim, temos aquilo que eu gosto de chamar “o pior vírus que a humanidade já conheceu”, marcante em ambas sociedades. O conformismo. A única razão plausível que me leva a compreender o porquê de ambas sociedades serem simplesmente tão, como dizer isto de uma maneira que não pareça ofensivo, dóceis, é o facto de sermos conformistas. Senão, que outra explicação para o facto de nós aceitarmos que possa haver jogos de futebol e mesmo assim o Zé Não-Sei-Das-Quantas não pode levar o seu filho ao parque? Ou porque é que aceitamos o facto das grandes empresas poderem estar abertas e a Maria Não-Sei-Das-Quantas não poder abrir o seu pequeno comércio local? Ou porquê é que é justo o nosso Presidente da República culpar os portugueses pelo aumento das transmissões do vírus, mas depois ele próprio dá um beijinho na mão do Papa e partilham a mesma caneta?

Claro que no filme, o conformismo é criado através da intimidação e do medo. Afinal de contas, se não te submeteres à ideia que é fixe haver jogos de fome onde crianças são mortas e sangue é derramado a cadas 5 minutos, és capaz de acabar chicoteado à frente dos teus amigos. Na nossa sociedade, o conformismo aparece sob a forma de dever público e neste momento, sanitário.

Em conclusão, se repararmos, o “novo normal” assume facetas até agora desconhecidas da nossa democracia. E acho sempre um bom exercício, deixar a mente navegar no mar infinito de cenários, onde podemos avaliar a nossa realidade.

Onde eu quero chegar com isto é que por vezes nós somos induzidos a uma educação onde só é possível ver o Coelho da Páscoa. E se calhar acaba por ser libertadora, a ignorância. O pior, é quando estás a procrastinar e começas a ouvir o coelho a fazer “quá-quá”.