Artigo de Opinião

BARCELONA-PORTO: FORMAS “RADICAIS” DE APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO (III)

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João Queirós

Neste terceiro de quatro artigos sobre modalidades e experiências de apropriação de parcelas do espaço urbano desenvolvidas à margem do quadro legal vigente – aquilo a que tenho chamado formas “radicais” de apropriação do espaço urbano –, o convite é para que, provenientes de Barcelona, nos instalemos definitivamente no Porto. Depois de, no mês passado, ter sugerido um regresso e um percurso rápido pelos anos “quentes” do pós-25 de abril de 1974 – seguramente o período “áureo” das ocupações na cidade do Porto -, a pergunta que deixei no ar foi sobre se tais ocupações, protagonizadas por famílias residentes ou recém-chegadas à cidade, findaram com o encerramento do PREC e a chamada “normalização democrática” posterior a 25 de novembro de 1975.

Ora, o que as evidências que é possível recolher sobre este assunto sugerem é que o ritmo e a visibilidade das ocupações de edifícios privados e públicos, em especial de fogos de habitação social recentemente construídos ou em construção, diminuíram sensivelmente após o verão de 1975, à medida que aumentava a respetiva repressão político-legislativa e policial. Particularmente depois dos acontecimentos de 25 de novembro do ano em causa, inicia-se uma alteração significativa no quadro de relações sociais e políticas vigente: removidos do comando militar os segmentos das forças armadas associados à esquerda e à extrema-esquerda, afastados os membros desta área política dos governos provisórios e dos principais meios de comunicação social e reafirmados publicamente os propósitos de repressão das ações ilegais que os movimentos populares pudessem continuar a desenvolver, as associações, comissões e outros grupos mais ou menos organizados de moradores depressa intuem que está em curso uma alteração importante das oportunidades de ação colocadas à sua disposição. A sua atividade prosseguirá, é certo, em muitos casos revestindo-se de novos contornos, mas haverá também situações de desmobilização total e de abandono rápido e “pacífico” dos espaços ocupados. Depois da realização das eleições legislativas e autárquicas de 1976, a representação transfere-se para os órgãos eleitos e o que sucede é que as organizações de base local, designadamente as que estavam associadas aos movimentos de moradores, perdem centralidade enquanto referentes da legitimidade do poder público e da autoridade e ação estatais. A conotação de muitas destas organizações com as forças “perdedoras” do 25 de novembro de 1975 agrava, aliás, esta sua condição periférica face aos novos centros do poder.

Para muitas famílias ocupantes, sobretudo para as que haviam ocupado equipamentos e edifícios públicos, o objetivo principal passa a ser o de “legalizar” a ocupação ou o de garantir, através do Estado, uma solução para o problema habitacional na sua origem. Entre 1976 e meados da década de 1980, a imprensa local dá conta de diversas disputas entre moradores e autoridades a propósito de ocupações realizadas depois do 25 de abril de 1974 e ao longo dos anos subsequentes em vários pontos da cidade: no Bairro de S. Tomé, freguesia de Paranhos, onde a entidade proprietária, o Fundo de Fomento da Habitação, acabará por legalizar a situação dos ocupantes, tornando-os arrendatários; na zona da Ribeira-Barredo, coração do centro histórico, onde famílias mal alojadas, nalguns casos incentivadas por proprietários locais, ocupam casas devolutas ou mesmo casas recuperadas, dificultando a prossecução das operações de renovação urbana projetadas para aquela área; em edifícios sem vocação habitacional, como no “Postigo do Sol”, edifício situado na freguesia da Sé, propriedade de uma ordem religiosa, ou no Castelo de S. João da Foz, que o Estado pretende retomar para fins de utilização militar. Na maior parte dos casos, a solução almejada – e eventualmente obtida – é a autorização de permanência ou a concretização da transferência para uma casa num bairro camarário.

Muitas destas disputas vão de par com as queixas acerca da incapacidade de um número crescente de famílias para aceder ao mercado privado da habitação. A década de 1980 é de decréscimo da promoção habitacional pública e de transferência para o mercado imobiliário e para os sistemas de crédito da maioria das responsabilidades em matéria de provisão de alojamento. No Porto em particular, o período é de esvaziamento da cidade: milhares de famílias passam a procurar nos subúrbios o que sabem não conseguir encontrar intramuros. Para as famílias pouco ou nada solventes, as que não têm recursos ou têm recursos escassos e incertos, as que não possuem bens ou poupanças e não têm, por isso, capacidade de endividamento, a solução é permanecer, mesmo que permanecer implique continuar a viver numa casa de “ilha”, num prédio velho e sobrelotado do centro histórico, numa casa ou parte de casa emprestada ou ocupada, numa barraca. Ao longo da década de 1980, e até bem dentro da década de 1990, a cidade observa o crescimento de um novo fenómeno de apropriação “radical” do espaço público. Nas imediações e logradouros dos blocos de diversos bairros sociais – em Aldoar, na Pasteleira, no Aleixo, no Cerco do Porto, no Lagarteiro – ou em terrenos baldios, matas e pequenas bouças, centenas de famílias sem acesso ao mercado de compra e venda de habitação ou ao mercado de arrendamento e igualmente sem acesso a habitação pública vivem em pequenas barracas de chapa ou de tijolo e blocos de cimento. Muitos dos portuenses desconhecem ou esqueceram a incidência desta modalidade de apropriação do espaço urbano protagonizada por famílias pobres, mas o Porto de meados da década de 1990 foi – também – uma cidade de barracas.

Muitas das barracas haveriam de ser erradicadas ao longo da segunda metade da década de 1990 e até aos primeiros anos do novo milénio pelo Programa Especial de Realojamento (PER), no âmbito do qual diversos novos bairros camarários foram construídos. Estaria o Porto a assistir finalmente ao fim das ocupações suscitadas pelos seus persistentes e insidiosos problemas habitacionais?

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