Artigo de Opinião
TECNOCRACIA E AS JOTAS
Estas fases de transição entre as lides de liderança associativa, no caso do mundo estundatil, e oportunidades de emprego ou lugares de destaque no aparelho de estado ou em empresas públicas e privadas em lugares de nomeação política, reflecte uma lógica que podemos considerar um tanto perversa da nossa actual democracia e da nossa sociedade.
Qualquer pessoa que passa algum tempo à frente de uma associação tem de gerir pessoas e portanto adquire uma bagagem em termos de trabalho de equipa, duma certa visão de desenvolvimento da organização que representa. E isso, em princípio, para qualquer gestor que vá depois selecionar alguém, algum jovem para ocupar cargos de responsabilidade com certeza levará em conta a experiência da pessoa. Teoricamente, até poderiamos considerar que as pessoas que passam pela liderança das associações estudantis terem oportunidades no mundo empresarial e nos cargos públicos assenta nessa experiência de liderança, embora ache que, genericamente, não seja essa a razão principal.
Acho que existem aspectos que estão relacionados com a própria sociedade portuguesa e outro aspecto tem a ver com a própria dinâmica dos partidos políticos em Portugal, em especial, do arco do poder: PSD, CDS-PP e PS.
No que diz respeito à sociedade, na verdade, ela evoluiu, como tantas outras, para esta lógica individualista, da concorrência e do mercado, desde os anos 60, 70, até agora, a partir dum contexto de maior envolvimento, intervenção pública e debate político e social, em que a construção das redes passou a obedecer a uma ambição pessoal e o desejo de ocupar posições com alguma vantagem, tanto ao nível da vida política e pública como ao nível profissional.
O que nos deve inquietar enquanto cidadãos é até que ponto este networking se destina a pôr ao serviço da sociedade, as organizações, as empresas e os grupos que lideramos, ou se interessa unicamente à ambição pessoal e à necessidade de conquistar ou reforçar lugares melhor remunerados ou de maior visibilidade e protagonismo de cada um.
Portanto, acho que do ponto de vista da sociedade foi crescendo ao longo da década de 90 e nesta viragem do século e do milénio, uma cultura tecnocrática que se foi impondo ao que seria tipicamente a cultura democrática do debate permanente, do questionamento, do sentido crítico da vida, da abordagem que leva a questionar o status quo.
A tecnocracia, em expansão desde os primeiros governos do Dr. Cavaco Silva, diz-nos o seguinte: a política é dos políticos. Quem está, está, quem tem poder, decide. E o resto tem apenas que seguir os critérios dos que estão nos lugares de topo, porque as suas decisões obedecem, supostamente, apenas a critérios técnicos.
Essa tecnocracia esvaziou o sentido da política. E levou a que as novas gerações que chegam à vida adulta ou a experiências deste tipo de associativismo incorporasse essa cultura mais propensa ao individualismo e menos inclinada para a problematização da sociedade e para a discussão ideológica e política.
Há outra elemento que é necessário juntar, que são os partidos e as suas organizações juvenis, as chamadas “jotas”. Porque acho que esses partidos que já referi, PSD, CDS-PP e PS, os partidos com experência governativa em Portugal, enveredaram muito nessa lógica. Criaram aparelhos que se tentaram aperfeiçoar, e que seguiram aquela cultura e atitude que referi, da lógica tecnocrática, o individualismo, o carreirismo, a tutela e o princípio da tutela.
Isto no fundo é aquilo que podemos considerar de seguidismo, que também são elementos que se substituem ao debate público e à democracia interna dos grandes partidos. No caso dos estudantes, e do movimento estudantil, aquilo que pressentimos olhando para esse mundo, é que essa cultura mais propensa ao individualismo e ao seguidismo traduz-se em práticas e comportamentos que são muito de reprodução da hierarquia, de vincar o poder e o poder simbólico da antiguidade, fenómeno que também se vê nas praxes. Não nos esqueçamos que é muito no contexto das praxes que se criam esses laços de lealdade, essas tutelas, a figura de padrinho que se apresenta como um protector e como tal, tem maior poder para recrutar os seus seguidores.
Tradicionalmente, desde que a juventude se impôs, ligada às universidades, as sociedades habituaram-se a que trouxessem uma nova mensagem, um ar fresco, que renovasse a própria agenda social, cultural e política. Infelizmente não é isso que está a acontecer, e uma das razões porque não é isso que acontece é pelos dados que são apresentados nesta investigação, que embora seja referente ao Porto, estou convencido que pode ser extensível a outras universidades e a outra realidade. É por essa razão que a maioria dos jovens, dos estudantes, eles próprios também muito condicionados por essa mesma cultura estudantil e consumista que há pouco enunciei, tendem a não participar. Desconfiam, mas não questionam. Não têm a iniciativa de contrariar, de oferecer alternativas, de participar massivamente na criação de alternativas.
Por isso, vemos que as direcções associativas são eleitas em geral por 20%, 30%, sendo que esta última já é muito. Portanto, 70% de abstenção já achamos ser natural. Isto é um sintoma da corrosão da nossa democracia que se repercute neste ambiente do associativismo estudantil.
Acho absolutamente impressionante que num quadro que temos vivido nos últimos 3 ou 4 anos, de crise, austeridade, de ausência total da perspectiva de futuro para os jovens, de imigração massiva daqueles que saem da universidade depois de acabar o curso, ou seja, uma juventude universitária sem futuro, vítima da precariedade e do desemprego, não se veja a presença da mobilização dos jovens a partir do movimento universitário português que são de facto as principais vítimas desta crise e desta austeridade.
E uma das razões acho ser que, de facto, as “jotas” penetram nas lógicas das associações mesmo quando elas não se assumem como partidárias, que diria ser a maioria dos casos, e essa lógica que prevalece é a lógica da “partidite”, e uso exactamente no sentido pejorativo da palavra.
Isto traduz-se num desligar, num divórcio crescente das suas bases e do eleitorado em geral, e no caso do associativismo estudantil, também um divórcio cada vez mais evidente entre as estruturas dirigentes e a sua base de apoio que deveriam ser os seus estudantes.
Elísio Estanque, professor da Universidade de Coimbra.
Nota: Este comentário foi pedido pelo JUP no seguimento do destaque “FAP… QUEM SÃO ELES?”
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