Artigo de Opinião
“Eu vi num reels”: as redes sociais se tornaram uma enciclopédia digital?
Um livro grosso, relativamente pesado e com capa dura, todo separado por cores, lembra? A enciclopédia, em sua essência, nada mais era do que uma grande compilação de conhecimento. As redes sociais, um universo de possibilidades em RGB.
Organizada em volumes ou tomos, a enciclopédia era um verdadeiro arsenal que abarcava desde ciências naturais e matemática até história, filosofia, artes e literatura. Cada volume tratava de um tema específico de forma detalhada e sistemática, fornecendo informações precisas e confiáveis para os leitores ávidos por aprender. A sua finalidade era apenas uma: democratizar o conhecimento.
Isso porque, antes das enciclopédias existirem, o acesso ao aprendizado era totalmente restrito aos poucos privilegiados, como académicos e membros da nobreza. Diante disso, o impacto que a enciclopédia trouxe para a evolução da humanidade é imensurável. Antes da sua criação, a transmissão de conhecimento era fragmentada, inacessível e elitista.
Denis Diderot e Jean le Rond D’Alembert foram os criadores de uma verdadeira revolução iluminista: a Enciclopédia. Com a megalomaníaca intenção de condensar todos os saberes possíveis em uma única publicação, disseminando conhecimento por todo o mundo
A criação enciclopédia deu início ao “esclarecimento”, as pessoas podiam consultar informações sobre praticamente “qualquer assunto” em um único local. E isso não apenas ampliou os horizontes intelectuais das massas, mas também estimulou a curiosidade e o desejo de aprendizado. Essa revolução fez com que mais pessoas alcançassem a maioridade intelectual que, segundo o filósofo Immanuel Kant, “trata-se da capacidade humana de pensar por si próprio”, ou seja, andar com as próprias pernas.
Aprender vendo fazer
Quando o YouTube foi criado enquanto plataforma de compartilhamento de vídeos, muito se falou sobre uma educação cada vez mais acessível e uma produção científico-cultural ainda mais colaborativa. Afinal, era a internet e toda a sua revolução informacional. Movimentos sociais e literaturas como Wikinomics (Anthony D. Williams), Cultura Livre (Lawrence Lessig) e até mesmo a criação da licença Creative Commons (2021), prometeram uma produção e promoção da indústria cultural ainda mais horizontal e que oferecesse um acesso gratuito e ilimitado às obras, criações e ao conhecimento como um todo. Mas nem tudo foi como se esperava. É a corrida pela relevância vista na obra Cauda Longa (2006) de Chris Anderson.
Redes Sociais. O que começou como uma plataforma de entretenimento para vídeos curtos, agora está se transformando em algo muito mais significativo: uma enciclopédia digital em constante evolução, dizem. O TikTok, com sua gama diversificada de conteúdo, está moldando a maneira como aprendemos, consumimos cultura e interagimos com o conhecimento.
Há quem diga que o TikTok é uma enciclopédia digital onde informações são transmitidas em vídeos curtos e envolventes, com efeitos visuais e transições que nos mantêm presos à tela. E, em questão de minutos, somos levados a achar que podemos aprender sobre toda a história do mundo, leis das ciências, as melhores receitas de culinária, comportamento, diagnósticos psicológicos e por aí vai. É uma síntese do conhecimento humano, entregue de forma acessível e cativante, mas totalmente rasa.
À medida que a indústria cultural se instaurou como produto do capital assumindo um lugar “acessível”, também testemunhamos a banalização desta enquanto identidade e patrimônio do povo
Immanuel Kant já alertava sobre a “barbárie estética“, a diluição do valor estético em meio à proliferação desenfreada de obras, sejam elas quais forem. A Indústria Cultural, conforme analisada por Theodor Adorno e Max Horkheimer (Dialética do Esclarecimento, 1944), ampliou essa preocupação, apontando para a transformação do conhecimento em mercadoria e a homogeneização da experiência humana. Para os autores, “a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecido, mas este pensamento esclarecido já contém em si, o núcleo do regresso”.
Isso porque a Indústria Cultural não segue a lógica do esclarecimento definida por Kant, ela é uma justaposição, afinal, serve como alienadora, oferecendo entretenimento, notícia e informação a milhões de pessoas. Ela não busca apenas influenciar [manipular] a demanda de mercadorias, mas — principalmente com plataformas como TikTok, Instagram, X e tantas outras — tornar comportamentos sociais e políticos minimamente previsíveis, espalhando preconceitos, ideologias nefastas, estilos de vida e, claro, hábitos de consumo. Vivemos numa era de influencers de bestialidades humanas em formato digital.
Reagir à imagens é muito mais fácil que ler
A lógica de aderência de conteúdos plásticos nas redes sociais e a semicultura — um dos principais fenômenos da era digital vigente —, têm produzido pessoas burras que insistem em saber de tudo sem ter de explicar nada. Kant já dizia que não basta a coragem para usar a própria razão. E a dialética do esclarecimento nos conta que é necessário ter condições subjetivas para acessar o conhecimento. Parece higienista, eu sei, mas indivíduos que jamais passaram por algum processo de formação adequada, nunca estão realmente aptos para fazer uso de sua própria razão.
Agora, com o TikTok emergindo como uma nova fronteira da cultura digital, enfrentamos um dilema ainda mais complexo: a interseção entre inteligência artificial, algoritmos e controle social. À medida que nos entregamos aos algoritmos, que nos apresentam conteúdos cada vez mais personalizados e “inteligentes”, corremos o risco de cair em bolhas de informação e perder a diversidade de perspectivas. É como usar um filtro de ovelha exclusivo e se entregar às matilhas de lobos.
A manipulação do Big Data promove diretamente a alienação digital. Estamos presos num scroll particular de consumo de conteúdos [infinito] que apenas reforçam as nossas próprias visões e preconceitos. Essa alienação não é apenas um fenômeno individual, mas também um problema social, onde as massas são direcionadas por algoritmos para atender aos interesses de poucos. Eu sei, vi num reels agorinha que isso se deu por conta disso…
Hora veja, enquanto alguns celebram a ascensão do TikTok como uma “enciclopédia digital”, também temos de estar atentos aos seus efeitos colaterais. Devemos questionar como podemos preservar a diversidade cultural e promover um acesso equitativo ao conhecimento em meio à crescente influência da inteligência artificial e dos algoritmos.
O TikTok representa mais do que apenas uma plataforma de entretenimento. É um reflexo de nossa sociedade digital em constante evolução, onde a tecnologia molda não apenas como aprendemos e nos conectamos, mas também como percebemos o mundo ao nosso redor. Se quisermos navegar com sucesso nesse novo território, devemos permanecer vigilantes, questionar os sistemas estabelecidos e buscar maneiras de garantir que essa tal enciclopédia digital do futuro seja verdadeiramente eficaz como o livro grosso e pesado foi.
Afinal, tem muito “intelectual” explicando teóricos, literaturas e afins em 60 segundos de vídeo com filtros cuties e músicas ao fundo. Mas se os receptores das mensagens não tiverem as condições subjetivas para se apropriarem desses conteúdos, pouco ou nada adianta o compartilhamento desenfreado desse conhecimento em larga escala. Se não há assimilação, são apenas frases de efeitos, receitas feitas, gatilhos emocionais e muita falácia.
Artigo da autoria de Ícaro Machado