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Artigo de Opinião

O pudor é a forma mais inteligente de perversão

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A literatura, o cinema e as artes performativas sempre estiveram a cargo de nos ensinar sobre o amor: a nossa relação com o corpo, o outro além de nós e o todo o desejo que envolve essas e outras partes. Precisamente sobre a maneira como lidamos com o prazer, o que faz do pudor a forma mais inteligente de perversão?
Ilustração: Circe, o feiticeiro

A literatura, o cinema e as artes performativas sempre estiveram a cargo de nos ensinar sobre o amor: a nossa relação com o corpo, o outro além de nós e o todo o desejo que envolve essas e outras partes. Precisamente sobre a maneira como lidamos com o prazer, o que faz do pudor a forma mais inteligente de perversão? 

O dicionário de Oxford define “pudor” como um substantivo masculino que se refere a um sentimento de vergonha, timidez ou mal-estar causado por qualquer coisa capaz de ferir a decência, a modéstia ou a inocência. Este mesmo índice também oferece uma segunda definição, apresentando o “pudor” como um sentimento e/ou atitude desenvolvidos por uma educação rígida [re]calcada por conceitos culturais muitas das vezes de base religiosa que, por exemplo, impedem que certas partes do corpo sejam expostas com naturalidade sem constrangimento.

Para Sigmund Freud, pai da psicanálise, e autor que sempre uso em minhas “explicações” acerca do corpo e das sexualidades, o conceito de pudor está intrinsecamente ligado ao desenvolvimento psicossexual e à dinâmica do inconsciente. Freud diz que o pudor surge como um mecanismo de defesa, atuando para reprimir desejos e impulsos que a sociedade decidiu serem inaceitáveis. 

Somos bichos que aprendem constantemente sobre existência. Desde a infância, passamos por fases em que nossos desejos e curiosidades sexuais são moldados pelas expectativas e normas sociais culturais cotidianas. Durante o complexo de Édipo, por exemplo, o sentimento de vergonha e pudor é intensificado à medida que a criança aprende a internalizar as proibições parentais sobre a sexualidade. Com a quebra desse complexo, o Superego assume o papel não somente dessa “gestão de caráter”, mas enquanto guardião da moral e bons costumes internalizados nesses primeiros anos antes e durante a nossa autoidentificação diante do espelho (Lacan).

Na problematização de nossa existência, Freud argumenta, em muitos de seus textos, que o pudor é uma manifestação da luta interna [incessante] entre o id, que busca a gratificação imediata de impulsos primários, e o superego, que incorpora essas normas e valores morais da sociedade. 

O ego, tentando mediar este conflito, muitas vezes utiliza-se do pudor para manter os desejos reprimidos no inconsciente

Assim, o pudor não é apenas uma expressão de vergonha ou moralidade, mas uma estrutura psíquica complexa que “protege” — numa ótica cívico-social, talvez — o indivíduo de conflitos internos e ansiedades. Nessa perspectiva, o pudor é mais do que um sentimento de vergonha; é um guardião da psique, controlando o fluxo de desejos e garantindo a conformidade com os ditames sociais. 

Perceba que essa perspectiva [deve] nos ajudar a compreender como o comportamento humano é profundamente influenciado por forças inconscientes e, principalmente, pelas normas culturais preexistentes enquanto interventor do eu socialis. Afinal, a civilização é fruto da repressão, por isso, quanto maior a nossa adaptação [castração] à civilização, maior a probabilidade de desenvolver neuroses. 

É só mais uma mordida de um amor divino 

No filme “Divino amor” (2019), do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, vale tudo para preservar a família e impor uma religião única. Qualquer semelhança com o extremismo evangélico e a hipocrisia da extrema-direita não é coincidência, é a arte que imita a vida — e vice-versa!

Esta é uma obra de ficção futurista e, ao mesmo tempo, escatológica. O longa-metragem tem o seu início sob a narração de uma criança, numa celebração tipicamente neopentecostal, com direito a luzes, música moderna, dança, além de um ambiente típico de uma rave. Seriam delírios de amor? A voz infantil situa o tempo e explica que o carnaval não é mais a festa principal do país, tendo sido substituído por uma festa gospel chamada de “festa do amor supremo”. 

Institucionalização descarada do pudor. O filme é um retrato metafórico de um mundo demasiadamente humano. Aquela realidade crua que o cinema brasileiro carrega consigo com toda a sua maestria. Do real, é aquela “autoenganação do discurso moral cristão” (Nietzsche). Afinal, tudo o que aprendemos sobre a vida nos foi ensinado. E o desejo sempre foi essa bússola norteadora que, segundo o budismo, é o que nos impede de ser felizes: sobre o desejo (Filosofia Vermelha)

Para questões de educação sexual e outros desejos, indico fortemente uma série “teen” da grande do stream, a Netflix. Sex Education consegue ensinar mais sobre desenvolvimento sexual, gênero, corpos, identidades e sexualidades que muitos planos pedagógicos vigentes em muitos países pelo mundo. Esta obra ficcional é um “ponto de partida” ideal porque faz da arte a sua facilitadora, utilizando-se do entretenimento para “atravessar” as pessoas. 

Experienciar coisas novas

Existe uma máxima que carrego comigo, ou melhor, que está presa ao meu mural de “post-it” decorando a parede do meu quarto. Este lembrete geométrico em tons de verde diz: “a vida é o que acontece entre os planos”, porque a gente tem de interagir para fugir do vazio da existência. Em tempos líquidos, como indica o grande filósofo Zygmunt Bauman, as nossas relações se tornam tão fluidas quanto incertas. Bauman descreve a modernidade líquida como uma era onde nada é feito para durar; onde compromissos e certezas são substituídos por transitoriedade e efemeridade. A liberdade de amar sem amarras. Mas não há liberdade sem responsabilidades. 

O amor líquido, nesse contexto, é uma forma de relação em que o engajamento profundo é frequentemente evitado, substituído por conexões frágeis e temporárias. Ninguém quer sofrer, apenas ferir

O conceito de liquidez de Bauman destaca como as relações humanas perderam a sua solidez. Tanto amigos como amantes são facilmente descartáveis, e as conexões são mantidas apenas enquanto oferecem algum benefício imediato. A durabilidade das relações, que outrora era um pilar fundamental da sociedade, agora é uma exceção. Essa superficialidade relacional não apenas dilui o sentido de comunidade, mas também contribui para um sentimento crescente de isolamento e insegurança. 

Complementando a visão de Bauman, Byung-Chul Han, em “A Agonia de Eros”, argumenta que a liquidez das relações corrói a profundidade emocional e a capacidade de conexão verdadeira. Han observa que, na busca incessante por prazer imediato e superficial, perdemos a essência do amor e da intimidade. Ele aponta que o Eros, entendido como uma força vital que nos conecta profundamente com o outro, está cada vez mais em declínio. 

A sociedade contemporânea, obcecada com o desempenho e a eficiência, transforma até o amor em um produto de consumo rápido, esvaziando-o de significado e profundidade. O capitalismo cria um positivismo tóxico que te torna único num universo de iguais

A visão de Han sobre a agonia do Eros ressalta a perda da capacidade de contemplação e entrega, elementos essenciais para a construção de vínculos consideravelmente significativos. Em um mundo onde as relações são constantemente negociadas e avaliadas, o verdadeiro compromisso se torna um bem raro. A vida, então, se esvai entre o que deixa de acontecer entre os tais planos, pelas faltas de brechas em agendas imaginárias, nos momentos em que, fugindo do vazio existencial, ousamos buscar uma conexão instantânea em aplicações, mais que jamais permitiremos serem autênticas e muito menos duradoura. É uma verdadeira  reinvenção da intimidade (Dunker). 

Era da reprodutibilidade digital: a tal imortalização do eu

Talvez esteja me repetindo aqui, mas a verdade é que com essa explosão digital, achamos que somos “autênticos” dentro das ofertas de autenticidades oferecidas diariamente pelo neocapitalismo. Na logística do mundo digital, Big Data, Metaverso e RGPD, tudo gerado por nós é exatamente sobre nós, mas que, por sua vez, terá sido vorazmente convergido — leia-se introjetado — para gerar lucro. Fica tranquilo, somos todos um amontoado de performances de uma vida instagramável humanamente [demasiadamente] falível. 

O ponto atual da história — a ser contada pelos stories, e não sentida para ser vivida —, encontra-se perdida nessa antítese de um “digimundo” de algoritmos binários de uma Era do eu que entretém o outro na tentativa frustrante e intrinsecamente narcísica de lidar consigo mesmo — ou de ser aceite pelo outro/para o outro. O “eu digital” é o mesmo “eu” que já não consegue mais consumir a si. Desleal com a sua verdade, forja a sua projeção digital seguindo as tendências da sociedade do desempenho que julga, mente e mata os nossos sonhos todos os dias. Nada de novo: segue a castração diária e o medo de não ser relevante o bastante para se manter vivo. 

Respondendo à máxima dessa discussão, o pudor e a perversão são como “yin-yang” da sexualidade humana. O pudor representa a repressão dos desejos sexuais, enquanto a perversão surge como expressão desses desejos reprimidos, recalcados no inconsciente pelas nossas objeções morais. Freud defende que a tensão entre esses dois elementos é responsável por moldar a nossa psique, influenciando diretamente os nossos comportamentos e, principalmente, corroborando para o surgimento de neuroses. O curioso é que ambos são fundamentais para se entender a mente humana e toda a sua complexidade em existir.

Tome fôlego. Como ser autêntico se tudo que sabes sobre ti mesmo foi inventado pela cultura que se alimenta de um emaranhado de fatos constituídos de uma matéria-prima que é subproduto de uma gama de massa que se amassa para caber num espaço “em aberto” dentro das disponibilidades idealizadas por um dos processos civilizatórios mais violentos: a construção social; esta, pungente na nossa memória coletiva, enraizada em violências, desejos e medos, e materializada numa reação de autocontrole do prazer humano: o pudor.

 

Artigo da autoria de Ícaro Machado

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