Artigo de Opinião
IA ocupa salas de aula e escancara analfabetismo digital
Conexões onlines, plataforma para interações mecanizadas e fóruns de debates sem contrapontos. A inteligência artificial deve ‘tomar as salas de aulas’ porque é mão de obra barata que não reclama de horas extras, não tira férias e muito menos luta por subsídios e direitos.
A quem interessa pautar a educação? O Documentário “Professoras” discute como a plataformização da educação aprofunda desigualdades no ensino. A produção retrata as transformações que a educação pública do Paraná vem enfrentando desde a pandemia, através dos relatos de quatro professoras. A arte produz conhecimento e representa a nossa mais pura ignorância: esquecer que somos nós, humanos, que criamos o mundo como conhecemos.
“Professoras” estreou na última terça-feira, 9 de julho, na Cinemateca de Curitiba, no Brasil. O longa, que assume um formato de documentário, apresenta os relatos de quatro professoras do ensino básico estadual — Adélia, Ana Paula, Maria Carolina e Cristiane — fazendo um panorama sobre as transformações que a educação pública no estado do Paraná vem enfrentando desde a pandemia. O foco está nos impactos ao trabalho docente, e uma das professoras avalia:
“É uma profissão que está sendo dizimada, será substituída pelas máquinas”.
Isso pode parecer um tanto extremista, dizer que as pessoas serão trocadas por máquinas — e talvez seja. Mas a tecnologia está a ressignificar o mundo. Estamos logados numa nova revolução industrial?
Segundo os relatos das professoras, a autonomia em sala de aula foi intensamente limitada: “De repente, tudo foi substituído por aulas prontas, uma padronização que é estranha à escola, feita por pessoas que não sabem da realidade da escola, alheias àquele processo educativo”.
Uma questão de política social
Para Rafa Barbosa, pessoa não-binária e professor efetivo no município de Aracati, litoral cearense do nordeste brasileiro, a desigualdade educacional é histórica, estrutural e existente. “Como bem sabemos, conhecimento é poder e os políticos, empresários e a sociedade capitalista entendem que servir e democratizar uma educação de qualidade é enfraquecer o sistema que reflete diretamente na desigualdade de modo geral”.
Rafa trabalha diretamente em escolas mais distantes do grande centro. Segundo o professor, o formato EaD tem vários aspectos negativos e jamais vai conseguir substituir os professores pelo simples fato de que a escola não está formando robôs, mas sim seres humanos que vivem em grupos. Outro ponto relevante é que ainda é preciso combater o analfabetismo virtual em muitas regiões do país, principalmente nos grupos majoritariamente minorizados. Segundo dados levantados pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) em 2023, 76% dos brasileiros não têm habilidades digitais básicas.
“É necessário, não só garantir o acesso à internet, mas equiparar e estruturar o ambiente escolar para o resultado satisfatório do ensino virtual. Na BNCC no que se diz respeito ao ensino em tempo integral, já existe uma oferta de disciplinas como robótica e cultura maker voltadas para a área, mas com a ajuda de professores”.
Por fim, o professor pondera que é importante salientar que o ensino EaD também tem pontos importantes, como aproximar universidades e faculdades, por exemplo. “Antes, era quase impossível para a população mais carente a realização de um curso de nível superior por questões territoriais e até mesmo pelo racismo ambiental.”
Lecionando em ambiente virtual durante a pandemia, Rafa comenta que alguns estudantes, pessoas neuro divergentes e pessoas com deficiência, tiveram bons resultados com o ensino remoto, contudo, quando retornaram para o espaço da sala de aula tiveram um retrocesso no ensino-aprendizagem. E isso diz muito sobre o quanto as nossas salas de aula também não estão preparadas para acolher a diversidade de alunos.
Em junho deste ano, O Conselho Nacional de Educação apoia decisão do MEC em suspender novos cursos de graduação em EAD. A portaria foi publicada em meio à polêmica sobre a qualidade de ensino dessas instituições e a decisão recente do Governo Federal de proibir a abertura de novas graduações em 17 áreas e de exigir 50% do curso presencial para pedagogia e licenciatura, por exemplo.
Inteligência Artificial: Uma Formação + Digital
Em Portugal, por exemplo, formações técnicas de projetos de reinserção de mercado como os Cursos de Aprendizagem, Programa Vida Ativa, Formações Modulares, que acontecem muitas vezes online, não se empenham diretamente em entender qual a real relação dos alunos com as máquinas e ‘softwares’ utilizados em salas de aula, focando-se apenas no conteúdo programático das formações.
Nesse caso, a responsabilidade pela adaptação e interação com ‘hardwares’ e ‘softwares’ utilizados nas aulas fica de total responsabilidade dos formandos. Não por não haver uma tutoria, mas pela falta de tempo ágil. Os formadores são obrigados a “passar por cima” do conteúdo e esperar que os alunos aprendam num momento assíncrono, sozinhos nas suas casas. A formação termina por ser, de certa forma, solitária numa perspectiva autocentrada e genérica no sentido de profundidade técnica .
É justamente sobre esse ‘hiato’ no processo de educação digital que o documentário “Professoras” busca evidenciar. A simples introdução de tecnologia nas salas de aula não é suficiente. Do que adianta oferecer um carro para quem não sabe dirigir?
É essencial garantir que todos os alunos tenham igual acesso às ferramentas digitais e às oportunidades que elas oferecem, evitando que a tecnologia se torne um fator de exclusão e não de inclusão.
Sempre trago o historiador Yuval Noah Harari quando abordo as Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC’s) e a evolução do ser humano. Não por ele ser uma referência em educação, mas porque este é realmente um bom começo para se perceber mais sobre a revolução tecnológica.
Na obra “21 lições para o século 21” (2018), Yuval discute como a revolução tecnológica pode intensificar desigualdades preexistentes. Harari argumenta que, sem uma abordagem consciente e ética, a tecnologia tem o potencial de criar uma divisão ainda maior entre os privilegiados e os desfavorecidos.
A plataformização da educação é um exemplo claro desse risco. Enquanto as plataformas digitais podem proporcionar recursos educacionais de alta qualidade, seu acesso desigual acentua a disparidade entre estudantes de diferentes origens sociais. Aqui indico, fortemente, a série Segunda Chamada (Globoplay).
E essa desigualdade não se refere apenas à aparelhagem em si, mas está fortemente ligada a uma cultura educacional bancária, além de um método de absorção de conteúdo antiquado em relação às TDICs. Grande parte da sociedade não encontra prazer na leitura e aprendizado, enxergando esses processos como uma “obrigação” para ascensão social e não um desejo.
Por isso, a reflexão de Harari sobre a urgência de repensar os sistemas educacionais ressoa profundamente com a mensagem do documentário, destacando a importância de políticas públicas que promovam a equidade na era digital. Afinal, o foco da educação não deve ser apenas preparar os indivíduos para o mercado de trabalho, mas também para a vida em uma sociedade diversa, complexa e cada vez mais hiper conectada.
‘Pedagogia do oprimido’ é uma educação como prática da liberdade
Paulo Freire, considerado um dos pensadores mais notáveis na história da pedagogia mundial, tendo influenciado o movimento chamado pedagogia crítica, enfatiza que a educação é um ato político que o educador deve ser um agente de mudança, capaz de promover uma educação libertadora que estimule a consciência crítica dos estudantes.
O pai da pedagogia no Brasil argumenta que o papel do professor é ajudar os alunos a se tornarem sujeitos de sua própria aprendizagem, capazes de questionar, refletir e agir sobre a realidade que os cerca. Por mais que a utilização da IA na educação prometa personalizar o aprendizado, é preciso haver uma adaptação dos materiais educativos às necessidades individuais dos alunos.
A Educação à Distância (EAD), especialmente evidenciada durante a pandemia de COVID-19, trouxe a educação para o ambiente virtual, oferecendo flexibilidade e acesso a recursos educativos variados. No entanto, os desafios da EAD em promover uma educação crítica e dialógica são eminentemente tangíveis.
A distância física pode dificultar a criação de um ambiente de aprendizagem colaborativo e a construção de relações pedagógicas significativas e reais. Talvez, automatizar tarefas administrativas, liberando tempo para que os professores se concentrem mais na interação humana e no desenvolvimento crítico dos estudantes, seja um bom passo positivo a ser considerado.
É curioso que essa mudança comece longo na base? Que uma das profissões mais desvalorizadas do mercado e, ironicamente, a mais importante para o humano, enquanto ser social e de desempenho, seja uma das primeiras a “sofrer” com essas adaptações abruptas.
‘Professoras’ revela como a plataformização, ao invés de democratizar o acesso ao conhecimento, tem exacerbado as desigualdades educacionais. E esse fenômeno é ilustrado através das experiências dessas professoras que enfrentam desafios significativos em contextos socioeconômicos variados. De quem está na linha de frente de lugares sem conexões digitais democráticas.
Estamos revisitando um mundo que visa uma máxima de “ordem e progresso” positivista onde, para se alcançar o sucesso, devemos nos pautar num antiquado darwinismo social. Estamos vivendo numa era dos super-humanos, talvez.
O que sei é que a forma como existimos e interagimos no mundo caminha, cada vez mais, para uma inutilização do humano físico para a idealização de uma nuvem de conhecimento digital em memória flash a fim de armazenar uma educação cada vez mais tecnicista e de desempenho.