Artigo de Opinião
Porto: compre-o ou deixe-o
Pessoas anônimas invadem a Invicta livremente. Centenas de transeuntes retratam em fotos o tal encontro com a cidade e suas dezenas de pontos turísticos desconhecidos pelo seu povo. O ‘mural em cerâmica’ ao lado da capela das almas é o click perfeito. Seria o Porto mais uma cidade instagramável esquecível?
No panorama global de nossa contemporaneidade, o marketing de cidades surgiu como uma ferramenta estratégica capaz de promover o desenvolvimento socioeconômico e — por tabela —, cultural de Portugal. O turismo, enquanto fenômeno social, assume o seu papel de vetor da economia, tornando-se capaz de manter viva a chama que faz queimar a cultura que se dissipa no ar feito o assar das castanhas na estação do metro da Trindade.
Para já, o turismo é uma atividade económica fundamental para a geração de riqueza e emprego em Portugal. Segundo dados do Instituto de Estatísticas de Portugal, o Consumo de Turismo no Território Económico (CTTE) foi equivalente a 15,8% do PIB (9,8% em 2021), igualmente acima dos níveis de 2019, quando equivalia a 15,3% do PIB
Nesse (re)fluxo, capitaliza-se a identidade do povo português enquanto este é tolhido de saber quem realmente é, escapando para a margem do alvoroço dos excursionistas em massa que cada vez mais invadem os grandes centros do país.
Todos os dias, me deparo com um mar de gente ao cruzar as ruas do Porto. Vivendo há dois anos no Bonfim, bairro que já foi eleito um dos mais cool da Europa, estou sempre a me “bater” com as pessoas pelas estreitas calçadas que separam os transeuntes dos carros. Há gente demais e esforços de menos para os locais.
Gentrificação. À medida que as cidades buscam se tornarem mais atrativas para o turismo, o investimento mal planejado incorpora o perigo de uma padronização da oferta cultural a partir da criação de espaços homogeneizados que privilegiam as demandas do mercado em detrimento da autenticidade local, atacando diretamente a identidade do povo enquanto patrimônio
Esse fenômeno faz com que a cultura pungente dos agentes locais como, o senhor do carrinho de castanhas no metro da trindade, a memória histórica das Carquejeiras do Porto, a (r)existência das Lavadeiras das Fontainhas ou das Peixeiras do Mercado do Bolhão, caiam cada vez mais no esquecimento e irrelevância.
É importante reconhecer que o marketing de cidades traz consigo grandes desafios no que diz respeito à preservação da identidade cultural e o risco iminente do ‘fenômeno social’ que podemos chamar de apagamento do patrimônio cultural do povo português.
Esse fenômeno levanta questões como: até que ponto as estratégias de marketing de cidades podem excitar modificações culturais e a descaracterização urbana, transformando as suas cidades em destinos genéricos e despersonalizados?
Essa reflexão me faz crer que a crescente atividade turística coloca em risco a herança cultural das cidades, tornando tudo muito plástico e monótono ao promover as ‘cidades do reconhecimento’.
Quanto custa o metro quadrado no Porto?
Intervenção. Lá em 2023, a artista e ativista Mariana Quaresma colou o valor do metro quadrado no Porto para todos saberem quanto custa viver aqui. Com a intervenção, a estudante de design queria chamar a atenção para a alta nos preços da habitação na cidade.
A instalação ‘Metro Quadrado’ é uma forma didática e criativa de ilustrar os preços elevados no Porto. A intervenção foi espalhada em pontos de grandes fluxos de turismo, como, por exemplo, a rua Santa Catarina, uma das principais ruas da cidade, bem como a Avenida dos Aliados e a estação Trindade. Na obra, a jovem expunha o preço das casas: “Isto é um metro quadrado. No Porto, custa 2.445€/m²”, lê-se.
A intervenção artística de Mariana tornou ‘lúdica’ uma discussão real, provocando uma reflexão sobre o quanto a gentrificação pode impactar diretamente a alta dos preços, sendo responsável por deixar muita gente de fora, literalmente.
Não é um problema exclusivo. Em meio à alta temporada do turismo na Europa, um grupo de manifestantes de Barcelona atirou água para espantar os visitantes da cidade. Munidos de pistolas de brinquedo e aos gritos de “Vão para casa!” e “Barcelona não está à venda!”, os moradores revoltados com o turismo massivo se dirigiram aos pontos de principal fluxo da capital catalã e molharam clientes de bares e restaurantes que comiam em mesas ao ar livre. A queixa é contra a alta dos preços na cidade espanhola.
Morto Ponto: o grafismo que grita nos muros
“Morto.” no lugar de “Porto.” Os autocolantes começaram a surgir em meados de 2017 e foram espalhados por vários cantos da cidade do Porto. Em vez de escritos a azul, aparecem a branco e preto, colados em mupis ou em caixotes do lixo. O movimento aborreceu o empresário Rui Moreira, que desde 2013, ocupa a presidência da Câmara do Porto pelo terceiro mandato consecutivo.
O grafismo, cada vez mais presente nas ruas enquanto expressão artística, tornou-se uma poderosa ferramenta de intervenção política no Porto, refletindo a voz e as aspirações do povo [e do imigrante]. Este movimento, que transcende a mera estética urbana, configura-se como um grito de resistência e de reivindicação de direitos em espaços públicos.
Cada mural e cada pichação carregam mensagens implícitas ou explícitas que denunciam injustiças sociais, desigualdades econômicas e abusos de poder.
Ao ocupar os muros das cidades, o grafite democratiza a arte, subvertendo a hegemonía cultural e promovendo a conscientização política, sendo, assim, um espelho das lutas e esperanças de comunidades marginalizadas e uma forma vibrante de ativismo urbano.
O presidente da câmara chegou a denunciar o movimento em sua página no Facebook em 2017, mesmo ano em que foi considerado réu pelo Ministério Público (MP) por favorecer a Selminho, imobiliária da família da qual era sócio, mas foi absorvido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 2022.
Cultura é Patrimônio: As Fontes Primárias da Memória vem do Povo Para o Povo
O Antropólogo argentino Néstor García Canclini, destaca que construir ‘cidades de reconhecimento’ compõe um dos maiores desafios enfrentados atualmente, isso porque “vivemos em tempos globais assinalados por deslocamentos, diversidade, interculturalidade e conflitos decorrentes da interação entre indivíduos e culturas diversas”.
Mas não se pode escapar da (r)evolução histórica iminente em que o mundo sempre esteve e que sempre seguirá.
A interconexão entre patrimônio, cultura e identidade é uma narrativa fundamental na construção da memória e história de um povo. Esses elementos são inseparáveis à forma como uma sociedade se percebe, ressignifica e se relaciona com o seu passado, presente e futuro.
Para a antropóloga cultural norte-americana Margaret Mead, a cultura não é apenas uma manifestação externa de artefatos e costumes, mas sim “um sistema de significados compartilhados que dá forma à nossa compreensão do mundo”.
O patrimônio, seja material ou imaterial, é a herança que recebemos de gerações passadas, uma expressão tangível e intangível da história, dos valores e das tradições de um povo. Os monumentos históricos, as obras de arte, as práticas culturais, as línguas e dialetos locais, tudo isso compõe o rico tecido do patrimônio cultural.
E é justamente através desses elementos que uma comunidade constrói a sua identidade coletiva, encontrando, na preservação e celebração de suas raízes, uma fonte de orgulho e pertencimento. Fortalecendo a sua existência enquanto agentes no presente a construir um futuro.
Um lugar: A Democratização e Ocupação Do Espaço Público
Heródoto (425 a.C), dizia que as cidades são os pontos focais da civilização, onde os homens se reúnem para trocar ideias e prosperar juntos. David Harvey, teórico da Geografia, diz que a cidade é a combinação de padrões materiais, ideias, valores e práticas que as pessoas criam enquanto vivem juntas. Entretanto, nos últimos anos, a estrutura social ‘cidade’ tem sido palco de grandes transformações no que desrespeito ao modo como o espaço público é concebido, gerido e utilizado.
Michel de Certeau, em sua obra A invenção do cotidiano (1980), apresenta uma reflexão profunda sobre a distinção entre “lugar” e “espaço” e como essa diferenciação pode nos ajudar a entender as operações que se estabelecem a partir desses conceitos. Para Certeau, lugar e espaço são termos distintos, cada um com suas próprias características e significados.
Seguindo as ideias do autor, um “lugar” é uma área definida e delimitada, muitas vezes associada a uma identidade ou significado específico. Ele pode ser físico, como uma cidade, um prédio ou uma sala, mas também pode ser conceitual, como um “lugar” na memória ou na cultura. Os lugares são estáticos e têm fronteiras claras. Eles são objetos de identificação e significado, onde as pessoas se situam e se relacionam.
Por outro lado, a ideia de “espaço”, apontada por Certeau, reflete a algo mais dinâmico, que se instaura numa fluidez e está mais próximo de uma construção social e relacional do que de uma entidade estática. O espaço não é simplesmente uma área física. Ele é, primordialmente, estabelecido pelas práticas cotidianas das pessoas que o habitam.
Perceba, enquanto o lugar é definido por suas características fixas, o espaço é moldado pelas interações e movimentos das pessoas que o ocupam. Essas interações incluem coisas como o impacto da ação de seus transeuntes, as conversas e narrativas contadas sobre ele, as relações comerciais e tantas outras atividades que possam ocorrer e percorrer este espaço.
A distinção entre lugar e espaço nos permite entender que os lugares estão mais ligados a identidade e significado, enquanto os espaços estão relacionados a práticas e interações sociais.
Portanto, as narrativas que envolvem os significados e as histórias atribuídas aos lugares e espaços, como as memórias associadas a um determinado local ou as histórias contadas sobre uma cidade, por exemplo, são reflexos da maneira com que as pessoas individualizam a cultura de forma coletiva, alterando coisas desde objetos utilitários até planejamentos urbanos e rituais sociais cívicos, leis e linguagem, de maneira a apropriá- los e ressignificá-los enquanto cultura de massa.
O “não-lugar” é um hiato na memória frágil de uma sociedade capitalista
Para o filósofo italiano Giorgio Agamben, autor de obras que percorrem temas que vão da estética à política, o turismo é uma forma secularizada da peregrinação. Hoje, segundo a hipótese de Agamben, os turistas que viajam sem descanso pelo mundo, que entrementes se transformou em museu, correspondem aos peregrinos que vagueiam de romaria em romaria pelo país.
Agamben propunha que os turistas se assimilam aos romeiros, pois tratam-se de pessoas que vagueiam mundo afora em busca de desbravar o conhecimento e se conectar com os seus credos a partir da fé.
Contudo, Byung-Chul Han (Agonia de Eros) acredita que a musealização e exposição das coisas aniquila precisamente seu valor cultural em favor do valor expositivo. Assim, o museu enquanto lugar da exposição é uma contrafigura do templo enquanto lugar do culto.
Também o turismo se contrapõe aos romeiros, ele gera “não-lugares’, enquanto o peregrinar está ligado a lugares. O “divino” pertence essencialmente ao lugar, que para Heidegger possibilita o morar humano. Ele é constituído por história, memória e identidade. Mas esses elementos estão ausentes dos “não-lugares” turísticos, onde a gente simplesmente passa e vai adiante, e não se demora. Consumindo os espaços e apagando os lugares.
Porto: Compre-o ou Deixei-o
O desaparecimento da identidade, a crise habitacional e a migração pendular são alguns dos impactos sociais mais relevantes para a cidade do Porto. É muito curioso que Portugal, grande desbravador de mares, permita ser invadido por turistas e por isso esteja, cada vez mais, perdendo a sua real identidade de ser e estar.
Identidade é para identificar. Além dos desafios trazidos pela atividade turística, a era da reprodutibilidade técnica e as tecnologias digitais também têm impactado profundamente a forma como nos relacionamos com o patrimônio, a cultura e a identidade.
Por um lado, a disseminação global de imagens e informações tornou o patrimônio cultural mais acessível do que nunca, permitindo que pessoas ao redor do mundo se conectem com culturas e tradições distantes. No entanto, essa mesma facilidade de reprodução também levanta questões sobre autenticidade e originalidade. Perde-se a aura (Walter Benjamin).
Para já, um dos principais desafios enfrentados pela cultura portuguesa pode ser intuído a partir do fenômeno da homogeneização cultural, impulsionado pela globalização e pela influência predominante da cultura ocidental. A abertura de fronteiras e a integração no mercado único europeu facilitaram o fluxo de bens culturais e serviços, levando a uma maior exposição a produtos culturais estrangeiros. Isso acentua preocupações sobre a preservação da identidade cultural de Portugal em face da crescente influência cultural global.
O que já se percebe é que o turismo desenfreado em Portugal está a promover o deslocamento dos moradores locais para as margens dos grandes centros, tem contribuído para a super faturação dos valores das rendas e, principalmente, ameaçado a autenticidade e a vitalidade das comunidades locais. Além disso, a gentrificação e a comercialização do ‘lugar’ público, somados à carência em políticas públicas efetivas, tendem a excluir grupos marginalizados e reforçar ainda mais as desigualdades sociais.
Para a Unesco, o patrimônio é uma responsabilidade que deve ser “compartilhada por toda a sociedade, exigindo um compromisso contínuo com sua preservação e valorização para as futuras gerações”. Isso até tem piada, é poético.
Agora, pois, partindo dessa premissa outorgada, pressinta: na proposta ‘Porto Ponto’, um simples ponto é capaz de assinalar uma ideia que finalmente avança com a missão secular — antes impossível — de invadir e conquistar a Invicta.
Artigo da autoria de Ícaro Machado