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Artigo de Opinião

Byung-Chul Han: Uma Sociedade da Transparência É Pornográfica? 

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Obra surrealista de Salvador Dalí intitulada 'A Persistência da Memória', mostrando relógios derretidos em um ambiente desértico, com um céu de cores quentes e elementos como uma árvore seca e uma formação rochosa ao fundo.
É o dinheiro, que iguala tudo a tudo, eliminando qualquer incomensurabilidade ou singularidade. Assim, a sociedade da transparência revela-se como um abismo infernal do igual | Imagem: A Persistência da Memória, de Salvador Dali

Estamos criando pornografia igual açúcar: tá por todo o lado. No entanto, quanto mais transamos esse outro digital, menos sabemos sobre como é amar. A ativação dessa positividade que, contraditoriamente, nega a negatividade, está fazendo de nós, uma sociedade cada vez mais vazia de sentido.

Somos uma geração que quer aparecer. Isso é fato. Tanto que a comunicação visual de nossa e-contemporaneidade acontece como um tipo de contágio visceral, uma ab-reação ou reflexo narcísico, esgotado de qualquer reflexão estética. Esse fenômeno global de estetização, no final das contas, surge, essencialmente, com um valor anestésico para lidar com esse presente que asfixia o futuro para mudar o passado.

São algoritmos para dançar. O que são todas essas trends, vídeos virais e influencers repentinos, senão uma grande coação dessa sociedade da transparência que grita para ser vista. Todo esse amontoado de imagens e a autopromoção alimentam o contágio desse imperativo da transparência. 

A coação no bombardeio de informação, o deslumbre da exposição, todas essas evidências geradas, a nossa imagem pornográfica, tudo vêm acelerando a nossa forma de ser e estar, reinventado a intimidade, promovendo esse descobrimento que fortalece ainda mais esse controle do poder sobre a gente. Essa autoenganação de uma liberdade assistida.

Sociedade da Transparência: A Aceleração da Exposição de Uma Informação Positiva

Han nos diz que no século XVIII, o mundo era concebido como theatrum mundi, onde o espaço público se assemelhava a um palco. Nesse contexto, a distância cênica impedia o contato direto entre corpos e almas. O teatral, por sua vez, contrastava com o táctil, pois era por meio de formas e sinais rituais que se expressava o peso da alma, ou seja, um mundo rico em signos e significantes.

Na Modernidade, porém, a distância teatral foi gradualmente abandonada em favor dessa reinvenção da intimidade. O Sociólogo e historiador norte-americano, Richard Sennett, crítica esse movimento, considerando-o uma evolução prejudicial, que priva o ser humano da capacidade de “jogar com autoimagens externas e possuí-las com sentimento”.

Ainda assim, formalização, convencionalização e ritualização não eliminam a expressividade, uma vez que o teatro é um espaço de expressão de sentimentos objetivos, e não de manifestações subjetivas da interioridade psíquica. Por isso, no teatro, sentimentos são representados, não expostos.

Na sociedade da transparência o lance é outro: o mundo não é mais um teatro onde ações e sentimentos são encenados e interpretados; tornou-se um mercado onde intimidades são expostas, vendidas e consumidas sem pudor ou ressentimentos. A super exposição que nivela esse real num movimento promíscuo de revelar-se. 

Essa ideologia de uma sociedade enquanto teatro, desse lugar de representação de sentimentos, dá agora espaço para o “fast-fashion”: mercado de exposição. Dessa forma, a representação teatral foi substituída pela exposição pornográfica. A imagem digital expurga a nossa existência, transformando toda e qualquer essência em meros likes. Não é permitido odiar, mesmo numa sociedade que mais se odeia abertamente.

Sociedade da Intimidade: A Transparência Para Um Mundo Controlador

Em sua obra, Sociedade da transparência (2012), o filósofo Byung-Chul Han revela as tensões existentes nessa sociedade positiva que se reproduz a partir de uma lógica hiper-realista de existir. Segundo o autor, a intimidade é a fórmula psicológica da transparência; imagina-se alcançar a transparência da alma, revelando-se os sentimentos e emoções íntimos:

“As coisas se tornam transparentes quando eliminam de si toda e qualquer negatividade, quando se tornam rasas e planas, quando se encaixam sem qualquer resistência ao curso raso do capital, da comunicação e da informação”.

Logo, para Han, as imagens que criamos de nós mesmos tornam-se transparentes quando, esvaziadas de qualquer dramaturgia, coreografia, cenografia, profundidade hermenêutica ou sentido, reduzem-se a um contato imediato entre o olho do espectador e a imagem adornada da criatura, tornando-se assim, pornográficas. 

Da mesma forma, as coisas perdem sua singularidade quando se expressam unicamente no preço. O dinheiro, que iguala tudo a tudo, elimina qualquer incomensurabilidade ou singularidade. Assim, a sociedade da transparência revela-se como um abismo infernal do igual.

As Fábulas da Sociedade da Transparência 

Não há limites para uma sociedade que insiste em reduzir a não-monogamia a um fenômeno antagonista ao poliamor — ou até mesmo uma relação aberta, disposta a sempre procurar mais e mais. Mas uma coisa não tem — digamos — nada a ver com a outra. 

Escutei uma psicóloga falar uma vez que negar a monogamia é entender que todas as relações são diferentes entre si. Não acreditar nesse formato heteronormativo de relação é perceber que o amor não deve ser contratual, onde a partilha de bens é a meta final dessa relação. Se fossemos 3 bilhões, então, no mundo, existiriam 3 bilhões de formas de amar. 

Estamos num momento do mundo onde nos armamos contra o outro — o “eles” que diferem de “nós” — e nos desarmamos de amor. E não me refiro ao amor romântico de uma era medieval, mas da pulsão de Eros e toda a sua força motriz para com as realizações do gênero humano.

Han fala que tensão erótica não surge da permanente exposição da nudez, mas da encenação de um focar e desfocar. Para o autor, “a consciência de estar sob um olhar gera um vazio que atua como um desencadeador intenso de processos de expressão, os quais, por sua vez, dão vida ao rosto”. 

Essa exposição exige dos criadores de conteúdos, estrelas pornôs e outros profissionais da exposição, por exemplo, uma indiferença descarada, algo que precisam dominar acima de tudo. Trata-se de aprender a não mostrar nada além do ato de mostrar em si — uma completa integração midiática.

Todas as performances, os gemidos, cuspes, situações e gozo, toda pornografia dos corpos performa sobre desejos e prazeres obscenos, transformando todo e qualquer consumidor em perverso, mas também tornando esse criador de conteúdo em objeto de perversidade e desejo.

Nesse processo, o rosto adquire um valor expositivo tão intenso que se satura. Contudo, é precisamente por meio desse esvaziamento da expressão que o erotismo se infiltra onde, originalmente, ele não poderia estar: no rosto humano.

Ao ser exposto como um meio puro, desprovido de qualquer expressividade concreta, o rosto torna-se acessível para novos usos, abrindo-se a uma nova forma de comunicação erótica.

A pornografia, então, parte sim desse erotismo cultural sobre o corpo e seus mistérios, mas se perde no momento em que se reproduz no consumo da transparência dessa verdade inibidora, onde o charme e a graça são aniquilados pelo desejo perverso de gozar desse outro.

A Sociedade da Transparência de Zuckerberg: Uma Meta Para Controle 

Atualmente, vivemos numa sociedade que muito opina e pouco sabe. As pessoas estão cheias de razão e ignoram opiniões fundidas e estabelecidas a partir de métodos e processos dialéticos. A sociedade digital mantém uma ideia de “todos temos opinião sobre tudo” e por isso enfrentamos fenômenos como “pós-verdade” e “fake News” que se instauram nessa sociedade da informação que não lê, mas opina.

Investimento em inteligência artificial, a promoção de discursos de ódio incutidos de liberdade de expressão. Todo esse ‘bromance’ dos barões das big techs com Trump ainda vai gerar muita confusão de ordem mundial. Mas esses são os respingos de uma sociedade digital da transparência. 

Para entender mais sobre essa “sociedade da transparência”, temos de evocar o conceito de “sociedade do desempenho”, também desenvolvido por Han, que diz que esse sujeito do desempenho é alguém livre dessa figura de domínio externo que o obriga a trabalhar e o explora no trabalho, transferindo essa coação para outra esfera. 

Trata-se de uma liberdade imaginada. Aqui, o agressor e a vítima coincidem, uma vez que o sujeito do desempenho assume agora o esse papel de agente que se autoexplora; ou seja, o individuo que explora é, ao mesmo tempo, o individuo explorado.

No capitalismo neoliberal, segundo Han, a autoexploração é muito mais eficiente do que a exploração do outro, pois é acompanhada por um sentimento de liberdade. Nesse sentimento, o sujeito do desempenho submete-se a uma coação livre, autogerada e autoregulada por esse positivismo tóxico de uma sociedade transparente. 

Logo, essa dialética da liberdade também está fincada no fundamento dessa sociedade de controle: o ideal final da sociedade da transparência. Isso porque, toda essa transparência leva-nos para um lugar de descobrimento que, finalmente, fortalece esse controle. No fim, somos agentes pornográficos de nós mesmos, que busca essa imortalidade fútil nessa persistência da memória. 

 

Artigo da Autoria de Ícaro Machado