Artigo de Opinião

Emilia Peréz: A Primeira Mulher Trans Indicada ao Oscar de Melhor Atriz é Invisibilizada

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As falas polêmicas do diretor Jacques Audiard desencadearam o início dessa repulsa orquestrada, passando pela péssima recepção dos mexicanos ao longa — que não deveria chocar —, até chegar nos tweets da atriz Sofía Gascón | Foto: Imagem de Reprodução

Emilia Peréz acumula polêmicas pela forma com que retrata a violência no México. Com direção do francês Jacques Audiard, o filme recebeu 13 indicações ao Oscar, incluindo o de melhor filme, melhor atriz coadjuvante e melhor atriz. Além das controvérsias envolvendo Karla Sofía Gascón, a produção é acusada de minimizar a gravidade dos crimes cometidos pelo tráfico de drogas.

Estava relutante, não queria parecer querer me contrapor ao movimento Ainda Estou Aqui. Mas depois que a Netflix decidiu tirar o nome da atriz Karla Sofía Gascón, estrela do filme “Emilia Perez”, de sua campanha publicitária para o Oscar, eu pensei: precisamos falar sobre esse linchamento transfóbico. 

Primeiramente, eu vi o filme. E isso é muito importante. Depois, convivi muitos anos com pessoas travestis que, posteriormente, transacionaram — ou não —, e posso dizer: nós, enquanto população LGBTQIAP+, somos terríveis uns com os outros. A sociedade digital transparente (HAN) é demasiadamente humana, ou seja, a hipocrisia corre em nossas veias e jorra na tela de nossos telemóveis toda vez que decidimos opinar — talvez eu esteja o sendo agora. 

É importante entender aqui que estamos vivendo no momento em que a primeira mulher trans é indicada ao Oscar de melhor atriz. Isso não seria silencioso e, muito menos, comemorado aos gritos. Principalmente na situação política em que os EUA se encontram. Toda essa manipulação faz parte desse show que o brasileiro transformou numa disputa de copa do mundo. E o Oscar tá amando esse engajamento digital funcional que só a massa operante brasileira sabe servir

Impressões

Emilia Peréz conta a história de Rita Mora (Zoë Saldaña), uma advogada a serviço de uma grande empresa que está mais interessada em ganhar dinheiro inocentando criminosos do que servir à Justiça. Ao vencer mais um caso, ela é contratada para ajudar o líder fugitivo de um cartel de drogas mexicano, Manitas (Karla Sofía Gascón), que quer abandonar os negócios e se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual, para afirmar o gênero com o qual se identifica. 

Os dez primeiros minutos do filme já te batem a cara ao trazer a misoginia e o feminicídio nosso de cada dia. A tela salta aos nossos olhos com uma música potente e lindamente interpretada pela atriz Zoë Saldaña — e o coral de transeúntes bailarinos — que escara o poder da mídia e dos poderosos sobre todo e qualquer corpo. Ela canta sobre violência e impunidade, além da sua invisibilidade enquanto mulher advogada que luta por reconhecimento.

A fotografia do filme foi bem concebida. Gosto das cores e de como elas vão se transformando com o desenrolar da trama, fugindo daquele aspecto do abstrato noturno sujo até alcançar o brilho de uma nova vida. O roteiro musical e seus signos trazem muita força ao interpretar a fuga de quem vive diariamente o desespero do medo e a dor da perda para a incerteza do desaparecimento.

Existe uma tensão significante na quebra das cenas em monólogos que fascina quem assiste. Temos enredos que fogem do óbvio e, claro, muita licença poética para sustentar a inquietação que toda ficção carrega consigo. Destaque para duas cenas: o jantar de reencontro e a ligação telefônica intercalada entre as três personagens. 

A Deformação Das Informações é uma Pós-Verdade

É preciso ver para opinar? As falas polêmicas do diretor Jacques Audiard desencadearam o início dessa repulsa orquestrada, passando pela péssima recepção dos mexicanos ao longa — que não deveria chocar —, até chegar nos tweets da atriz Sofía Gascón. 

Audiard disse numa entrevista que não fez muitas pesquisas sobre o México e que sabia o suficiente sobre o país para fazer o filme. Ele explicou que, “embora sua história seja baseada em realidades sociais e políticas, ele nunca teve a intenção de fazer um documentário sobre a situação no México ou sobre a transição de gênero”.

No entanto, alguns críticos consideram que Emilia Peréz prejudica a abordagem da crise ao tentar apresentar uma nova perspectiva. Isso porque, na trama, a personagem de Gascón, Emilia, após passar por uma transição de gênero, é retratada como uma defensora das vítimas de seu próprio cartel. Mas isso me parece mais uma espécie de redenção ao perdão ou até mesmo um autoflagelo pela culpa por aproveitar o marginal como possibilidade única de sobrevivência. 

Tudo num contexto ficcional que também traz muitas outras questões envoltas por essa transição, como o fato de que não existe mudança presente que se mantenha presa ao passado, por exemplo. Mas Audiard caiu na anedota do “se ele não foi ao México para conceber, eu não preciso ver para perceber”. Mas alguém nessa oração está falando asneiras. 

Afinal, não é a primeira vez que essa escolha de produção acontece. Cinema também é isso. É criar um set de filmagem, recriar um lugar e fazer a coisa acontecer. Era Uma Vez Em… Hollywood (2019), do Quentin Tarantino, tá aí para isso. E, de novo, estamos falando de um filme de ficção. Embora tenha um apelo social sobre pessoas desaparecidas vítimas do narcotráfico no méxico, Emilia Peréz não é uma obra documental. É uma visão da coisa. 

Brasileiros, questões: vale lembrar que na série Round 6, Hyun-Ju — jogadora 120 — é uma jovem trans que entra no jogo para conseguir pagar as cirurgias de readequação de sexo. No entanto, quem interpreta Hyun-Ju é o ator cis Park Sung-soon. Na quarta temporada de La Casa de Papel, a personagem Manilla é uma mulher trans, mas interpretada pela atriz cis Belén Cuesta. Duas séries de suceso mundial que trazem personagens trans interpretadas por pessoas cis. Alguém vomitou algo? 

Emilia Peréz: A Decadência do Oscar

Eu lembro que o Oscar era um dia de gala na sala de casa. A emissora com concessão nacional, TV Globo (Brasil), fazia a transmissão do prêmio e alguns artistas da casa eram escalados para levantar opiniões e comentar sobre os seus favoritos. Algumas pessoas hoje deviam simplesmente seguir o exemplo da atriz brasileira Glória Pires e assumirem que não são capazes de opinar

A verdade é que a premiação do Oscar está cada vez mais decadente. O mundo meio que percebeu que é uma premiação criada por norte americanos para norte americanos (Monroe), uma auto validação, uma forma de dizer: “somos os melhores”. Mas isso é uma ferramenta de poder político, numa logística de indústria cultural cujo foco é mais que óbvio: exportar a sua cultura como a melhor e mais interessante. Atrair consumidor e vender ideologias. 

Indústria Cultural 

A premiação do Oscar é, na verdade, um dos maiores símbolos da indústria cultural, conceito formulado por Theodor Adorno e Max Horkheimer para descrever a padronização e comercialização da arte sob o capitalismo. 

Segundo Adorno, a indústria cultural não apenas entretém, mas molda a percepção da realidade, promovendo ideologias dominantes. O Oscar exemplifica esse fenômeno ao consolidar uma narrativa na qual Hollywood se coloca como epicentro da produção cinematográfica mundial e reforça valores que legitimam a hegemonia cultural dos Estados Unidos.

Filmes sobre guerras, conflitos globais e herois nacionais frequentemente retratam os EUA como a força moral que guia o mundo. Essa construção simbólica fortalece o papel do país como referência civilizatória e justifica suas intervenções políticas e econômicas.

O Oscar, portanto, não é apenas um evento de celebração do cinema, mas um mecanismo de validação da cultura dominante. Ele exemplifica como a indústria cultural opera, transformando arte em mercadoria e reforçando ideologias que mantêm a ordem vigente, tornando o entretenimento uma ferramenta de legitimação do poder.

É tão conveniente toda essa aversão ao filme Emilia Peréz num momento histórico para o Brasil, com três grandes indicações ao Oscar pelo filme Ainda Estou Aqui (melhor filme melhor, filme internacional e melhor atriz). O filme de  Walter Salles é o primeiro filme Original Globoplay, stream da TV Globo que, curiosamente, financiou a ditadura militar e agora conta uma história sobre o fascismo. É a corrida pela relevância e um investimento pesado na internacionalização do GloboPlay: a Netflix ganhou, também quero. 

Transfobia Para Combater a Transfobia?

Karla Sofía Gascón foi indicada pela sua atuação, não por quem ela é em vida — pode parecer condescendente, mas isso é um fato. A primeira mulher trans a concorrer ao Oscar de melhor atriz foi julgada e inviabilizada porque o tribunal da internet achou certo. Em nome da moral e dos bons costumes, em nome de uma descontextualização dos fatos. Vai concorrer na surdina. Escondida, para não atrapalhar o fluxo. Criminalizada.

Em 2023, um caso emblemático de preconceito antitrans em jornais mexicanos baseado em rumores de redes sociais chamou muita atenção: o caso da boxeadora mexicana Tamara Cruz, que perdeu para a boxeadora argelina Imane Khelif em 25 de março de 2023 e foi posteriormente desqualificada por apresentar altos níveis de testosterona nos exames. 

Depois, meios tradicionais como El Universal, Milenio e Excélsior afirmaram, falsamente, que Khelif era uma boxeadora transgênero, por volta de 30 de março. Alguns dias depois, mídias como Aristegui Noticias e Animal Político desmentiram a notícia.

Saiba Mais: Relatório sobre transfobia em meios mexicanos aponta caminhos para combater narrativas de ódio contra população LGBTQIAP+ (fonte: Knight Center for Journalism in the Americas)

Johnny Depp, Wood Allen, Harvey Weinstein, Roman Polanski, Mel Gibson, Kevin Spacey, Ezra Miller, Charlie Sheen e tantos outros artistas envolvidos diretamente em escândalos — e nem vou trazer brasileiros —, a motivação de grande parte dos brasileiros contra a atriz do filme — que nem estreou no país — é clara: transfobia. Mas ninguém está preparado para assumir isso. 

Vale a pena lembrá-los que o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis, aponta dossiê Apesar da redução de 16% nas mortes em 2024, o Brasil lidera, pelo 16º ano consecutivo, os índices globais de assassinatos contra essa população. A maioria das vítimas são mulheres trans, jovens, negras e nordestinas, com crimes marcados por extrema violência (saiba mais)

A verdade é que o Brasil não precisa de Oscar para validar suas superproduções. O Brasil é uma potência no cinema mundial. O brasileiro é que não vai ao cinema assistir a produções nacionais: santo de casa não faz milagre. E tolo é aquele que acha que lhe escapa o racismo, o machismo e, principalmente, a LGBTQIAP+ fobia. Esses que se dizem livres desses males de nossa herança cívico-cultural, o colonialismo, são aqueles que mais são. 

Sabendo disso, reitero, eu passo pano para a primeira atriz trans indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Mesmo sabendo que é um sistema de autovalidação, causar esse pane é mostrar que podemos chegar em qualquer lugar. Mesmo que este lugar seja apenas mais um signo dessa indústria cultural significante. Ocupar é sempre resistir! Se você entendeu as motivação das polêmicas da Karol Konka no BBB, você sabe que é só mais um dia de luta.


Texto da Autoria de Ícaro Machado

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