Política

DOSSIÊ ‘PROTESTOS GLOBAIS’: HONG KONG CONTRA O GOLIAS CHINÊS

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Protestos em Hong Kong no dia 1 de Janeiro de 2020. Foto: Studio Incendo

Este artigo é o quarto de uma série de quatro que o JUP dedica aos protestos populares que saíram à rua, nos últimos meses, em diversas regiões do mundo. 


As gerações mais novas, já nascidas depois da transição de Hong Kong para a China, não estão prontas para abdicar da liberdade de que ainda gozam no território. Estes jovens, subitamente famosos em todo o mundo depois da ocupação do Politécnico da cidade, serão a população em idade ativa quando, em 2047, o protocolo assinado entre o Reino Unido e a China perder efeito e Hong Kong se tornar mais uma cidade chinesa, como qualquer outra.

Convulsão prolonga-se há um ano

Os últimos meses de 2019 ficaram marcados por uma série de protestos violentos nas mais variadas geografias. Na sua origem estiveram reivindicações por melhores condições de vida e o descontentamento com as classes políticas corrompidas pelo grande poder económico.

No entanto, nenhum movimento terá tido o impacto mediático das manifestações em Hong Kong, onde ao longo dos últimos meses a tensão tem crescido à medida que as forças policiais e o governo chinês reprimem de forma cada vez mais óbvia e violenta a vontade popular.

Quando em fevereiro deste ano o governo da região propôs uma nova Lei que permitia a extradição de cidadãos para serem julgados na “main-land”, o povo tomou as ruas de assalto em protestos de uma magnitude inédita.

Milhões de pessoas marcharam pelas principais artérias da cidade, revoltados com um corpo político subjugado às vontades do governo chinês. A proposta acabaria por ser retirada, já em julho, mas acabou por ser o rastilho para o movimento que nos últimos meses deixou a cidade em sobressalto e as autoridades chinesas à beira de um ataque de nervos.

O sistema político de Hong Kong

O território deixou de estar sob administração britânica em 1997, regressando de novo à alçada da gigante China. Desde então a população exige mais direitos democráticos, como verdadeira liberdade de expressão (protestos de 2003), o poder de definirem os seus currículos escolares (2012), e, talvez a mais emblemática de todas as reivindicações, as condições institucionais para realizar eleições verdadeiramente livres, sem a influência da China.

A expressão “sufrágio universal” tem ganho força entre os manifestantes, e dá conta daquela que é a maior falácia na ideia de uma Hong Kong verdadeiramente autónoma: o parlamento da região, composto por 70 lugares, divide-se entre os 40 eleitos pelo povo, e os 30 eleitos por empresas e grupos de interesse como o setor financeiro ou o farmacêutico, com tendências claramente pró-China e com uma relação direta e de quase promiscuidade com os órgãos de Pequim.

As principais diferenças entre Hong Kong e a China giram à volta dos direitos civis, da economia, do idioma e do sistema judicial e político, e os protestos dos últimos 20 anos têm estado relacionados com estes aspetos de forma mais ou menos direta.

À medida que a população mais jovem ganha consciência política e vê as suas perspetivas de futuro ameaçadas por um mercado de habitação em contração e uma economia controlada pelo Estado chinês, a lareira da desilusão começa a arder com cada vez maior vigor.

Protestos em Hong Kong no dia 1 de Janeiro de 2020. Foto: Studio Incendo

A política expansionista da China

Não demorou muito até que, como quase sempre acontece com eventos desta escala e tão mediatizados, a discussão se centrasse nos próprios protestos e deixasse de lado as exigências dos revoltosos.

Pedidos de inquérito à atuação da polícia e suspeitas de que haveria forças chinesas infiltradas nas manifestações vieram agudizar as posições de ambos os lados e contribuir para a sensação de estado de guerra que se vive dentro do território.

Muitos protestantes afirmam-se mesmo dispostos a morrer pelas suas reivindicações e pela Hong Kong com que sempre sonharam. Esta mistura de radicalismo revolucionário com uma força política implacável e inamovível nas suas posições forma um cocktail perigoso para a região, e a violência do último ano reflete a tensão acumulada entre os dois lados desde a transferência de poderes.

Contudo, se há 30 anos Hong Kong representava quase 25% do PIB chinês, o crescimento económico registado pela China nos últimos anos reduziu esta fração para apenas 3%.

A China já não depende de Hong Kong no plano económico e os acontecimentos ocorridos nos últimos meses poderão ser apenas mais um sintoma da política expansionista da república chinesa. O país, potência económica com o maior crescimento do mundo nas últimas décadas, tem vindo a alargar a sua esfera de poder sob a aparente permissividade da comunidade internacional.

Nos últimos anos Pequim tem aumentado a sua influência um pouco por todo o mundo em vias de desenvolvimento. Desde a compra de dívida de países africanos aos planos para uma nova “rota da seda” que lhe permita controlar o comércio internacional nas próximas décadas, ou à aposta em mercados gigantes no entretenimento como o cinema e o futebol, o Secretário Geral Xi Jinping começa a ver ganhar forma a sua visão de uma China unificada e próspera, e a assumir-se como a nova potência diplomática no mundo.

Protestos em Hong Kong no dia 1 de Janeiro de 2020. Foto: Studio Incendo

Manter Hong Kong e Macau sobre a sua jurisdição é apenas um traço num quadro muito maior que a China quer pintar no seu futuro. Deixar passar a ideia de que este tipo de insurgência e revolta poderiam ser tolerados seria um rude golpe na autoridade que a China quer inspirar no mundo.

O Estado vigilante na génese do sistema de créditos sociais adotado por este governo ou a opressão dos uigures (muçulmanos) no noroeste do país indicam que a China se está a tornar aos poucos no tipo de Estado autoritário que inspirava os maiores pesadelos de Aldous Huxley e do seu discípulo George Orwell no século XX.

Uma relação de forças desigual

Resolver a situação em Hong Kong é neste momento uma prioridade para Pequim. Os protestantes prometem não recuar em nenhuma das suas exigências, mas a relação desigual de forças não configura um bom presságio para as suas ambições. O tempo está do lado do governo chinês, e à medida que 2047 se aproxima, a população de Hong Kong vê as suas opções reduzidas.

A identidade de Hong Kong não é de fácil definição. Depois de 150 anos de controlo britânico e da passagem de testemunho à República Popular da China, a região assume-se como liberal, democrática, cosmopolita e progressista. Com a incógnita que paira sobre o futuro, resta saber se a Hong Kong que conhecemos terá de morrer para que possa finalmente nascer livre e independente. Os últimos meses mostraram o poder da ação coletiva e do protesto organizado, mas produziram poucos resultados práticos. O maior receio na região é que depois dos protestos a influência da China apenas aumente.

Texto da autoria de José Diogo Milheiro. Revisto por Miguel Marques Ribeiro.

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