Opinião
Bernie Sanders: entre o radical e o visionário
Welcome to America
Em “Pós Capitalismo” (2015), Paul Mason defende que o neoliberalismo, como o conhecemos, está esgotado.
A doutrina dos mercados sem controlo, com a desigualdade gritante que cria, a especulação financeira que permite, e a redução do papel dos Estados a que incentiva, é hoje universalmente aceite no mundo Ocidental, incluindo pelos mais pobres, como a derradeira expressão da racionalidade humana.
Em lugar algum no mundo a ideia de livre iniciativa é tão embelezada como nos Estados Unidos da América. Um lugar onde as pessoas recebem quase trezentas vezes menos do que recebe o CEO da empresa onde trabalham.
Onde suportam um esforço fiscal tão grande ou maior do que o seu patrão, vendo-se obrigadas a contrair dívidas que duram gerações de cada vez que têm problemas de saúde. Ou por quererem ter acesso a uma educação de nível superior.
Um lugar onde todos os dias se respira a poluição produzida pelas mega-empresas, enquanto os tecnocratas que as compram e vendem como quem muda de camisa vivem em palácios luxuosos no alto dos arranha-céus de Nova Iorque ou dos vales de Los Angeles.
E onde, apesar de tudo isto, os super-ricos são idolatrados, a ganância desmedida é justificada como parte de natureza humana, e se continua a achar que “anyone can make it in America”, quando todo o sistema parece, a quem olha de fora, desenhado para manter os pobres na pobreza, e pior, na ignorância.
Altura para uma mudança?
Enquanto assim for, homens como Bernie Sanders continuarão a ser considerados radicais. A máquina é demasiado grande para ruir de um momento para o outro. O dinheiro dos poucos tem muita influência junto de decisores políticos, meios de comunicação, e todas as instituições que consideramos pilares fundamentais de uma democracia.
Mas mesmo que o Senador Bernie não chegue à Sala Oval, as suas ideias já começaram a ganhar raízes no eleitorado americano. Desde 2016, a percentagem de americanos que acredita, por exemplo, que a garantia de cobertura de seguros de saúde é uma responsabilidade do governo federal, ultrapassou a dos que acham que não. Coincidência? Sanders acha que não.
Quem é Bernie?
Dado em quase todas as sondagens como a mais séria ameaça à reeleição de Donald Trump, o Senador do Vermont volta a entrar na corrida à nomeação democrata para a candidatura à Casa Branca depois de em 2016 ter perdido para Hillary Clinton.
Mas não foi em 2016 que Bernard Sanders, nascido e criado em Brooklyn, Nova Iorque, no pós segunda guerra mundial, apareceu na cena política americana.
Envolvido em movimentos pelos direitos civis desde os seus tempos de faculdade, foi presidente da Câmara de Burlington, no Vermont, onde já na altura se destacava não só pelas suas ideias, mas também pela proximidade que mantinha com os cidadãos e pela maneira particular como levava a política até eles.
Ficou famoso por apresentar um programa de televisão em que abordava as pessoas na rua e lhes perguntava quais as suas maiores preocupações e problemas, e o que a Câmara podia fazer para os resolver.
Uma das maiores críticas que o Senador enfrenta é a de que é apenas mais um populista ideológico. Gosta de prometer grandes mudanças e de parecer amigo dos cidadãos. Mas as propostas que faz nesta campanha de 2020 são as mesmas que fazia há 30 anos quando era presidente da Câmara.
Saúde, educação e fiscalidade
A maior e mais sonante de todas as ideias que constam do seu programa é a de proporcionar cuidados de saúde a todos os cidadãos americanos, acabando de vez com os premiums e apresentando um plano de seguros de pagamento único e ao cuidado do Estado, como acontece em tantos países na Europa. Na visão do Senador, a saúde deve ser um direito e não um privilégio no país mais rico da história do mundo.
Da mesma forma, Bernie Sanders defende que o ensino superior devia ser de acesso universal e gratuito nos EUA. Propõe ainda que toda a “student debt” já existente seja anulada, independentemente da capacidade dos devedores para a pagar.
A questão que os seus críticos colocam não deixa de ser pertinente. Como é que o Senador planeia pagar por tudo isto? A resposta: política fiscal.
O presidente Trump cortou os impostos para as empresas e sobre os ganhos de capital, numa política claramente regressiva.
Os bilionários americanos, donos de empresas e especuladores financeiros, suportam um sacrifício fiscal menor que os trabalhadores, quando consideramos um leque alargado de impostos e a capacidade contributiva dos vários quartis da distribuição de rendimento e riqueza, de acordo com a análise levada a cabo por Emmanuel Saez e Gabriel Zucman no livro “The Triumph of Injustice”.
Parte deste fenómeno explica a ascensão de líderes populistas um pouco por todo o Ocidente. As classes médias não beneficiaram do crescimento económico das últimas décadas.
A proposta de Bernie Sanders é simples. Taxar os super-ricos de forma a que paguem “their fair share”, e dessa forma financiar as suas propostas e o futuro dos EUA.
Uma revolução política
Mas nada disso será possível sem as condições políticas. Bernie vive nos corredores de Washington desde 1990, quando foi eleito pela primeira vez para o representar o Estado do Vermont no Congresso. Sabe como poucos como funcionam as câmaras do Congresso e do Senado, e sabe também, por isso, como ganhar votações e manobrar a agenda política.
Com o poder crescente dos lobbies, as grandes doações para campanhas, e a própria construção das eleições americanas, desde o plano regional (com as questões do gerrymandering e da formação dos mapas eleitorais) ao nacional (muita gente nem sabe bem o que é o Colégio Eleitoral ou como funciona), a democracia nos EUA está refém de interesses contrários ao do grande público, defende Sanders.
Ao contrário do que acontece com demagogos populistas, Bernie não mudou de valores conforme a evolução da opinião pública. Aliás, mudou tanto nos último 30 anos como os EUA. Pouco ou nada.
Mais do que mudar os mecanismos e dinâmicas da política americana, Bernie pode ser o rastilho para uma mentalidade coletiva mais progressista e liberal.
Com ambos os partidos a afastarem-se do centro do espetro político nas últimas décadas, o discurso político nos EUA nunca esteve tão polarizado. Apesar de fiel às suas ideias, Sanders será certamente mais conciliador do que o atual presidente.
Numa altura em que as perspetivas de crescimento não são animadoras, o impacto das alterações climáticas se começa a notar com cada vez mais força, e a pandemia do Covid-19 expôs as debilidades tanto do sistema de saúde norte-americano como da liderança de Donald Trump, Bernie Sanders pode ser exatamente aquilo de que os EUA precisam.