Opinião

Estados vigilantes: a ameaça para lá da pandemia

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As tecnologias de reconhecimento facial estão cada vez mais disseminadas. Fonte: REuters

O Estado que temos é o Estado que queremos?

No seu livro de 2014 “The fourth revolution: the global race to reinvent the state”, Adrian Wooldridge e John Micklethwait levam-nos numa viagem pelas origens e mutações do Estado como hoje o conhecemos.

Partindo das ideias do “Leviatã” de Thomas Hobbes, do “contrato social” de Rosseau ou do “estado natural” de John Locke, conduzem-nos pelas Revoluções Iluministas do século XVIII e pelos ideais liberais de Milton Friedman e Friedrich Hayek, até chegarem à Singapura dos anos 90 e ao capitalismo de Estado chinês do século XXI.

Na visão dos autores, fundamentada por uma extensa lista de estudos nas áreas da Ciência Política e da Economia e Escolha Pública, o modelo de Estado que temos hoje nas democracias ocidentais está a ruir ao ritmo da evolução tecnológica, caindo sobre o peso da sua própria dimensão e consequente ineficiência.

A alternativa asiática

A ideia de que o capitalismo de mercado livre e a democracia andam de mãos dadas numa perfeita simbiose, gerando eternamente melhorias materiais nas condições de vida dos cidadãos libertados das correntes opressoras dos regimes autocráticos, tem vindo a ser contestada a partir de duas perspetivas.

Alguns, como o britânico Paul Mason, acreditam que o modelo neoliberal de mercado está condenado ao fracasso precisamente por força da massificação das tecnologias de informação, que, na sua opinião, desvincularão o trabalho do valor económico, fazendo ruir o sistema de preços da maioria dos bens e serviços.

Outros, como Lee Kuan Yew, antigo primeiro-ministro de Singapura e considerado o pai da “alternativa asiática”, têm vindo a demonstrar nas últimas décadas como o Estado pode garantir cuidados de saúde, níveis elevados de educação, e um aumento sólido e consistente da riqueza per capita, num modelo de governo “mais autoritário e mais intervencionista” do que aquele que vigora nas democracias liberais.

Câmara de video-vigilância numa rua chinesa. Fonte: Financialexpress.com

O apelo desta solução é óbvio. A China é o melhor exemplo. Nos últimos 30 anos, praticamente erradicou a pobreza extrema em que milhões de pessoas viviam, surgindo no palco internacional como a segunda grande potência económica mundial. Caminha agora a passos largos para o primeiro lugar, dotando de poderes crescentes o único partido político, perseguindo jornalistas, e montando um sistema de créditos sociais assente na vigilância estatal que fará certamente George Orwell dar voltas na campa.

O vírus do medo

Mas não é só nos países pobres e nas economias emergentes que este desprezo pelos valores ocidentais tem ganho raízes. Para lá da onda de populismo que vem varrendo algumas das democracias mais sólidas do mundo nos últimos anos, uma outra ameaça vai crescendo nas sombras da pandemia.

Desde que a covid-19 chegou ao ocidente que a ideia de que estamos em guerra e de que temos de fazer tudo ao nosso alcance para erradicar a doença e podermos voltar ao normal se tornou geralmente aceite. Parece haver um consenso tácito acerca da necessidade de colocar em ação grandes programas de vigilância e controlo para ultrapassar a dura realidade que a pandemia impôs às nossas sociedades.

No entanto, juristas de todo o mundo têm alertado nas últimas semanas para a possibilidade de as restrições impostas no combate à propagação da pandemia se tornarem duradouras. O perigo de perpetuação de leis originalmente idealizadas como excecionais é bem real.

O Patriot Act, por exemplo, aprovado nos Estados Unidos depois dos ataques do 11 de Setembro como parte do esforço de guerra contra o terrorismo, estendeu-se no tempo enquanto sistema de vigilância de carácter permanente e sistemático.

A suspensão de liberdades civis em tempos de medo não só é perigosa para o estado das democracias; muitas vezes, não é sequer eficaz nas tarefas a que se propõe. Tecnologias como a geolocalização ou o reconhecimento facial podem ajudar a monitorizar a evolução da pandemia, mas não chegam para pôr fim ao contágio.

A vigilância resulta mesmo?

Albert Fox Cahn, fundador e diretor executivo da Surveillance Technology Oversight Project (S.T.O.P.), uma organização norte americana empenhada em expor o abuso de poder que estas tecnologias permitem, lembra que países como a Coreia do Sul ou Singapura não tiveram sucesso na luta contra a covid-19 por terem posto em prática medidas como esta, mas antes e sobretudo pela capacidade de testagem que evidenciaram desde as primeiras fases de propagação.

Num momento em que um Estado “grande” e paternalista é talvez mais necessário do que nunca, a questão que se coloca é se ele será capaz de voltar a encolher quando (e se) ultrapassarmos a pandemia.

Para já, a ideia que passa dos últimos meses é que é mais fácil responder às exigências da crise sanitária em regimes autoritários do que em democracias liberais, onde os governos se têm de preocupar simultaneamente em conter o vírus, e em garantir que não perdem as próximas eleições.

Num cartaz com a imagem de Xi Jiping, líder chinês, lê-se ‘Big Brother is watching you’. Fonte: Reuters

Nós e as máquinas

Em 1940, no auge da crise de Dunkirk, George Orwell terá discutido com o poeta Stephen Spender como a capacidade de prever o futuro da civilização depende da perceção que temos sobre “o tipo de mundo em que vivemos”.

As esferas de poder e influência mundiais têm vindo a mudar ao longo dos últimos anos, lenta mas radicalmente. E não apenas no plano da política e dos Estados-nação, da batalha retórica entre os valores ocidentais e asiáticos.

O poder das grandes empresas tecnológicas para recolher e tratar os nossos dados é uma arma poderosa, com implicações potencialmente perigosas para a sociedade, como vários exemplos de tempos recentes têm ilustrado.

Alguns gigantes da chamada ‘big tech’: Amazon, Apple, Facebook e Google.

Esta Omni consciência é, de facto, uma ferramenta de vigilância à qual é quase impossível escapar, tão entranhada que está no nosso quotidiano.

Permitir de forma mais ou menos leviana que as nossas vidas sejam comandadas por algoritmos em troca de uma (falsa?) sensação de segurança pode ser um passo perigoso numa altura em que a humanidade, num dos lados do mundo, parece ter esgotado as ideias sobre como se reinventar, e no outro parece priorizar o “bem comum” em detrimento dos direitos dos seus cidadãos.

Num tipo de mundo em que informação é poder, os dados são armas, e as guerras se combatem em rede, é importante pensar duas vezes antes de confiar às máquinas o nosso destino comum.

Texto da autoria de José Milheiro. Revisto por Miguel Marques Ribeiro.

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