Política
Índia: A maior greve da história
A “revolução verde”
Nos anos 60 da década passada, a Índia passou por uma mudança significativa no setor da agricultura. O momento, que ficou conhecido para a história como a “revolução verde”, permitiu um avanço tecnológico nas técnicas de cultivo, e definiu preços base para certos produtos.
Embora tenha permitido combater a fome que sentia em muitos locais pela Índia fora, o sistema acabou por criar uma menor diversidade no cultivo e por ter um impacto ambiental significativo. Passado meio século, o programa já é apelidado pelos economistas de “arcaico”, uma vez que contribuiu para o abrandamento das cadeias de entrega de alimentos e para o desperdício alimentar.
Nos últimos meses, o governo indiano aproveitou a preocupação geral com a pandemia e decidiu elaborar leis sem que estas fossem aprovadas pelo parlamento. Estas mudanças, apesar de não eliminarem totalmente os preços base dos produtos cultivados, permitem aos negócios de maior dimensão uma maior facilidade de acesso à compra direta dos produtos dos pequenos agricultores, bem como dos seus terrenos. Além disso, o governo decidiu banir a queima da palha resultante da colheita de grãos, pelo seu contributo para os graves problemas de poluição do país.
Apesar de o governo ter dito que estas medidas tinham como objetivo “empoderar os pequenos agricultores”, o receio é que as mudanças façam mais mal que bem, abrindo eventualmente as portas à falência dos seus negócios, forçando-os a vender os terrenos às grandes empresas a preços mais baixos.
Uma nova revolução
A pandemia trouxe consequências significativas para toda a economia mundial, e especialmente para a Índia, que registrou taxas de desemprego e quedas no produto interno bruto recorde. Uma grande parte dos indianos ainda trabalha na área da agricultura, pelo que, quando foram anunciadas mudanças nas leis que regulam o sector, os protestos não se fizeram esperar.
O governo indiano defende que as novas leis pretendem fomentar a inovação no sector da agricultura. No entanto, os pequenos agricultores acreditam que estas mudanças irão resultar num maior poderio das grandes empresas e na falência garantida dos negócios de menor dimensão. O primeiro-ministro tentou justificar a mudança nas leis que protegiam os pequenos agricultores ao dizer que esta era a única alternativa para tornar o sector mais lucrativo para o país.
A resposta foi imediata, e depois de algumas reuniões entre o governo e representantes do sector, que acabaram por não conseguir chegar a acordo, vários protestos foram sendo organizados a partir de agosto. Apesar dos confrontos com a polícia, os manifestantes não chegariam a sair da capital. A manifestação de maior impacto foi quando, em novembro, se atingiu o número de 250 milhões de pessoas nas ruas (um recorde mundial), contra as mudanças aplicadas pelo governo.
Os manifestantes prometeram não desistir até que as novas fossem eliminadas e afirmam que “estão prontos para ganhar esta luta”. Por outro lado, o primeiro-ministro chegou a chamar os protestantes de “mal orientados” e “antinacionais”.
A maior manifestação da história
Os agricultores reuniram-se em acampamentos temporários ao redor de Delhi, preparados com alimentos e outros bens necessários para durarem meses de intensos protestos. A polícia tentou dispersá-los com o auxílio de gás pimenta e chegou a prender alguns dos que bloquearam as estradas principais da cidade.
No entanto, o momento-chave, no meio dos intensos meses de protestos, chegou no dia 26 de novembro, quando 250 milhões de pessoas, incluindo agricultores, estudantes e defensores dos direitos das mulheres, se reuniram em oposição às novas leis, um recorde absoluto mundial. O protesto realizou-se numa data simbólica, 26 de novembro é o Dia Nacional da Constituição Indiana, um marco importante na transição do país de colónia para república.
Mesmo quase dois meses após esse dia, os protestantes ainda ocupam o território em volta da capital. Os acampamentos temporários tornaram-se “pequenas cidades” e, quando uns ficam cansados e doentes, rapidamente são substituídos por outros agricultores. O governo assume agora atrasar a aplicação das leis por dezoito meses de forma a encontrar uma solução que possa ser aceite pelos agricultores. No entanto, os protestos estão a espalhar-se para outros setores económicos do país, já que os chefes das estações de comboio planeiam começar uma greve de fome. Num país no qual 60% da sua população depende da agricultura, os seus habitantes mais pobres não sentem medo da pandemia cujo agravamento é quase certo devido às poucas condições sanitárias naqueles locais: “O meu avô não tem medo do COVID-19. Ele tem medo do nosso futuro.”
Artigo da autoria de Beatriz Carvalho. Revisto por José Milheiro e Marco Matos.