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Primeira sessão do Ciclo Habitação realizada no Porto
Pelas 21h30 do dia 22 de junho, passava na galeria nº42 a primeira curta metragem da noite, “The Hut”, de John Smith. Não seria o único filme do realizador britânico, já que após “City”, do americano Jon Jost, e “Block”, da compatriota Emily Richardson, acabariam a reprodução de filmes estrangeiros com “Hackney Marshes – Nov 4th 1977″. A sessão concluiu-se com o filme de Sílvia das Fadas, “A Casa, A Verdadeira, e a Seguinte, Ainda Está por Fazer”. De forma a entender melhor o contexto, as circunstâncias e a dimensão política do ciclo, o JUP foi ao encontro dos dois cineastas portugueses.
À conversa com Pedro Maia
Pedro Maia, portuense de 24 anos, estudou cinema na Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa. É ele o principal organizador do Ciclo Habitação e desde logo conecta a dificuldade que jovens realizadores têm em produzir e divulgar o seu trabalho ao nascimento desta iniciativa. Sobre isto, afirma que além de se lançar como programador e curador, o evento permite “falar sobre algo que seja realmente importante para a minha comunidade e naquilo que são as minhas motivações políticas”, assim como que “ao pensar na dificuldade que foi encontrar salas de cinema para exibir filmes meus, eu soube que a maneira como organizava este ciclo tinha de ser a escapar à sala de cinema”, algo que se mostrou tornar realidade com a exibição das películas num espaço que não foi concebido para receber sessões de cinema.
Apesar de não ter qualquer tipo de apoio financeiro, conseguiu levar a cabo o ciclo. “É possível que este ciclo me ajude no futuro a arranjar mais financiamento para fazer mais ciclos também. Ao mostrar este portfólio, acaba por ser um investimento na comunidade, mas também em mim próprio, como não poderia deixar de ser e como deve ser”, afirma Gavina Maia . Ainda sobre o financiamento, o cineasta adiciona que “a exibição de cinema não é apoiada em Portugal, porque não existe respeito em Portugal pelo cinema, em geral”. Questiona se os portugueses sabem da existência do Plano Nacional de Cinema, justificando que este não é adotado, e se acham que “é importante aprender Os Lusíadas e Fernando Pessoa, porque é que não há de ser importante também aprender um pouco de Manoel de Oliveira, ou um pouco de João César Monteiro, ou o tratamento cinematográfico em si?” Por fim, diz que “se tens um tratamento para com o português de educação cultural e educação criativa, porque é que o cinema tem que ser excluído disso, se é, talvez, uma das artes mais elucidativas a que nós temos acesso?”
Sobre a sua experiência durante a preparação desta iniciativa, nomeadamente no que toca ao crescente desaparecimento de espaços artísticos no Porto e na disponibilidade dos existentes para o receber, revela que fez um levantamento extensivo na cidade, tendo conseguido locais para todas as sessões do ciclo. Fosse salas de concertos, associações culturais, associações de moradores e edifícios privados, Pedro Maia conta que bastantes “estão preparados para receber uma sessão de cinema. Podem não estar preparados a nível técnico nem material, mas têm essa motivação e conseguem colaborar contigo bem para fazer essas coisas acontecer”, algo que lhe vai permitir exibir em mais 9 datas na invicta. Não se comediu em elogiar a “energia criativa” da cidade, pois existem “muitas pessoas cheias de dedicação para, com um grande dinamismo, criarem essas iniciativas, criarem esses espaços, criarem essas plataformas”. Contudo, admite que a escassez destes espaços é algo a notar, sendo que “enquanto que alguns se desmoronam, outros crescem, mas a verdade é que a tendência é que cada vez mais desapareçam esses espaços (…) há uma gentrificação muito grande na cidade, que não apanha só as casas, apanha também os espaços culturais, sem dúvida”.
Quanto ao impacto que pretende causar no público do seu projeto, é otimista nas suas previsões. “Se puder inspirar alguém, o meu saldo é positivo, mesmo que [o Ciclo Habitação] não devolva o dinheiro todo (…) se as inspirar tanto quanto [os filmes] me inspiraram a mim, se plantarem essa semente de revolução um pouco, se as motivar ao ver as lutas das outras pessoas, eu vou ficar muito feliz”, diz o cineasta. Ainda sobre os resultados que pretende obter, fala acerca da questão da habitação em si como um dos motivos pela realização da iniciativa, pois acredita que se deve “mostrar um pouco algumas abordagens diferentes ao próprio tema, para que não tenhamos de estar só a pensar na habitação como uma coisa inacessível”. Sendo a primeira parte do ciclo um pouco mais direcionada nesse sentido, como o próprio menciona, é “uma parte mais dinâmica e plural que aborda o Ciclo com muitas diferentes perspetivas, que fala sobre o que é mesmo apreciar habitação. Dá-nos oportunidade de refletir sobre habitação num campo que não seja só estarmos sempre com medo de a perder.” Conclui, então, que irão passar filmes que “são verdadeiramente felizes, outros que são tristes mas também são felizes na sua luta. Não tem nenhum pessimismo gratuito”.
Ainda na temática da habitação, a gentrificação surgiu de novo à conversa. Gavina Maia conta que temos “todos os nossos grandes espaços a serem demolidos para construção de imenso hotéis ou outros tipos de empreendimentos para turistas, casas a fechar para se tornarem em Airbnb’s (…) espaços icónicos também a serem restaurados no sentido de apelar ao turista”. Sobre aquilo que a população sente, diz que os portugueses “cada vez sentem mais que não estão a viver nas suas próprias cidades.” e que estão “num parque de diversões de outras pessoas, a trabalhar para elas também”. Termina por falar em medidas que poderiam ser tomadas pelo governo de Portugal, tais como o aumento de oferta de habitação pública e “eliminarmos os Vistos Gold e todas as variantes que surgiram entretanto”, pois “o interesse turístico não baixava (…) temos um país lindíssimo e porque o nome está mais que espalhado para Portugal, nós não vamos ficar mais pobres a investirmos mais na habitação pública”. Acrescenta, ainda, que “há claramente um espetro político que se preocupa e oferece soluções para estas ideias” e que “termos demasiada reserva em dizer que [este ciclo] é de esquerda é uma coisa um bocadinho tóxica”.
À conversa com Sílvia das Fadas
Também formada em cinema, Sílvia das Fadas faz filmes e inclusive deu aulas na sua área. Mora de momento na aldeia de Troviscais e foi lá que se fixou graças à sétima arte. Um dos seus projetos mais ambiciosos, o Cinema Fulgor, que em parte inspirou a criação do Ciclo Habitação, leva o cinema ao mundo rural alentejano. Como a própria diz, é um cinema com “raízes móveis“, que dado o seu carácter nomádico, percorre várias localidades. Acerca desta iniciativa, Sílvia conta que exibe filmes que “tenham a ver com o mundo rural, filmes de carácter experimental, político, que mudem a nossa perspetiva ou que mostrem uma outra relação com os seres «mais que humanos»: com as plantas, com as pedras, com a água, os rios, a natureza. E sobretudo filmes feitos por mulheres”. Segundo a cineasta, o seu projeto surge do “desejo de ver cinema” e da “escassez de programação de cinema e de artes cinemáticas no Alentejo”.
Sobre o público alentejano, fala em abertura a “outros tipo de cinema, de filmes, que não passam nas televisões ou nos cineteatros, como os filmes blockbusters e cinema mais comercial”. Porém, admite haver “uma espécie de menosprezo em relação às pessoas que vivem no mundo rural, como se não fossem perceber, como se não tivessem direito”, realçando a aderência das pessoas às suas sessões e como o Cinema Fulgor se rege por bases assentes no diálogo com as populações, tentando sempre chegar ao máximo de comunidades locais. Nessa abordagem, transmitir uma mensagem faz parte do plano, já que, para si, o cinema “tem em si potência de transformar quem o vê, de afetar, de criar algo que não estava lá antes ou transformar algo, a forma como vemos o mundo” e tem extrema importância mostrar “filmes de várias cinegeografias, diversos contextos. De perceber como é que os filmes ressoam ali, neste contexto muito específico”. Conclui que “é uma experiência coletiva ver e pensar sobre cinema, de conseguir relacionar o cinema, ou o filme em questão, com as nossas experiências individuais e também coletivas, com o território”.
Mais direcionada para o Ciclo Habitação, confessa que o seu filme, “A Casa, A Verdadeira, e a Seguinte, Ainda Está por Fazer“, foi “uma viagem, um retrato de diversos lugares, um pouco assim pela Europa fora, que foram construídos sobre um impulso utópico”. Sílvia conseguiu documentar o trabalho de indivíduos que se dedicaram à arquitetura e escultura para erguer casas, e não só, de forma a obter a “materialização de algumas ideias utópicas”. Alguns exemplos disso incluem “um palácio ideal no Sul da França, que foi construído por um carteiro no final da sua ronda de trabalho, durante 33 anos” e um trabalhador encarregue de construir lápides num cemitério na Roménia que “fez um retrato de cada pessoa que morreu e o seu papel na comunidade. Dedicou-lhes poemas e construiu uma sociedade de iguais, de certa forma”. Com este filme pretendeu “retratar que há muitos mundos no mundo, que outras coisas são possíveis, outros gestos, outras vidas”.
Aproveitou para deixar o seu agradecimento aos esforços de Pedro Maia para tornar este ciclo numa realidade, já que lhe pareceu bastante notório o “trabalho todo de organizar este ciclo um pouco por toda a cidade, em diversos espaços, em relacionar-se com algo que é mesmo uma urgência nos nossos dias que é a habitação e o acesso à habitação, e trazer cinema experimental para estes sítios parece-me assim também um gesto muito corajoso da parte dele”, mostrando a sua felicidade por fazer parte desta edição do Ciclo Habitação.
Artigo por Diogo Macedo Malcata
Conteúdo multimédia por Inês Aleixo