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MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA: CONDUTA CULTURAL OU PRÁTICA CRIMINAL?

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A mutilação genital feminina é definida pela OMS, pelo UNFPA e pela UNICEF como “todos os procedimentos que envolvam a remoção parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher ou que provoquem lesões nos mesmos por razões não médicas, sendo considerada uma prática tradicional nefasta”. Em Portugal, bem como noutros 10 países europeus, esta conduta é considerada crime desde a aplicação da Convenção de Istambul, aprovada em 2011.

Patrícia Neto, da Associação Plano i, defende que a mutilação genital feminina não é uma prática intrinsecamente ligada à religião e, portanto, não deve ser associada a grupos religiosos. Mais do que uma conduta religiosa, é uma conduta cultural. Para Patrícia, “a resolução vai sempre passar pela prevenção”, implícita na comunicação entre culturas e na partilha de valores e ideais. Assim, a proximidade entre comunidades será capaz de erradicar esta prática em nada benéfica para a mulher.

Para Marco R. Henriques, o segundo orador da noite, da Amnistia Internacional, há uma discriminação na aplicação da criminalização desta prática em Portugal que não devia existir. Em Espanha, a aplicação da Convenção de Istambul criminaliza qualquer prática de mutilação genital, seja feminina ou masculina. Porque não incluir todas as possibilidades de mutilação na aplicação portuguesa desta lei? Sendo uma prática enraizada em várias culturas, ainda que com relações com a religião, “à qual a história deu a volta ao texto”, a prevenção passa pela educação e, também, pela socialização. No Egipto, por exemplo, esta conduta é praticada em meio hospitalar, depois de um certo pagamento. É necessário um processo de troca de ideias e inclusão. Não podemos querer erradicar uma prática de um grupo cultural e isolar esse grupo na periferia. Um projeto levado a cabo em Lisboa e no Vale do Tejo, por exemplo, sinaliza todas as situações de mulheres que tenham sido excisadas para prevenir a perpetuação dessa mesma conduta na restante família. Marco questiona “até que ponto um Estado de Direito pode agir sobre estas famílias? Não estará, no momento em que atue sem qualquer ato que o fundamente, a agir como um Estado Polícia?”

Marco Henriques defende, ainda, que a mutilação genital não deve passar por um processo de obrigatoriedade mas, caso a mulher decida que quer ser excisada, deve ter o direito e as condições para que tal aconteça. O problema, tal como Ana Pereira afirmou, é que nas comunidades onde esta prática é vista como algo natural, esta começa a ser feita cada vez mais cedo, não só em crianças muito novas, com idades que variam entre os 6 e os 9 anos, como também em bebés, não se podendo falar de “consentimento” no ato.

Tomando a palavra, Ana, repórter do jornal Público, falou ainda de como esta “prática nefasta” se processa na Guiné-Bissau, caso que estudou de perto: normalmente, as crianças são levadas para a casa duma fanateca (mulher com um conjunto especial de facas para o efeito), que as acolhe na sua casa durante uma a duas semanas. Durante o decorrer deste tempo, as jovens meninas aprendem cânticos e a fazer pratos que os homens gostam, aprendendo que a mulher  “vai ter de sofrer” — ou seja, todo o ritual, que não tem necessariamente de implicar o corte, é um “ritual de submissão da mulher”. A mulher é uma “coisa”, vai passando de homem para homem: do pai para o marido e, no caso de viuvez, para o cunhado. Por ser uma prática com tanta história na cultura guineense, as organizações humanitárias que querem intervir têm dificuldade em serem financiadas; para não falar de outros problemas relacionados com a submissão da mulher (como a violência doméstica) que também se verificam.

A jornalista contou ainda do caso de Nima, uma mulher guineense que foi levada pelas tias, com 9 anos, para ser excisada, o que lhe trouxe alguns problemas a nível físico, que só confirmou depois de uma ida ao médico, por volta da altura em que foi obrigada a casar. Descobriu que o mau procedimento daquela prática lhe traria problemas na lubrificação durante o ato sexual e, como tal, o prazer que retiraria do mesmo seria nulo; e também que teria consequências aquando do parto. Estas verificaram-se, anos mais tarde, quando o seu primeiro bebé “nasceu morto”. Por ser uma mulher com posses, veio a Portugal ter os seus outros filhos; e tem feito de tudo para que a sua filha não seja sujeita ao mesmo, o que lhe valeu a reprovação da família, que a vê como uma “má muçulmana”. Entretanto, Nima tornou-se deputada no seu país de origem e propôs a lei contra a mutilação genital feminina, e viu-se mesmo obrigada a retirar propostas anteriores, sob pena de estar a ser ameaçada de morte, insultada dentro e fora do Parlamento e pôr em causa a popularidade do seu partido. Aprovada em 2011, esta lei tem sido alvo de discussão constante: no ano passado, por exemplo, havia um abaixo-assinado para que fosse revista, com o intuito de acabar com esta mesma lei.

Patrícia salientou, por fim, as dificuldades financeiras que o país atravessa como entrave ao fim destas práticas. A sensibilização passa, em grande parte, por mostrar às fanatecas imagens do que pode correr mal; ou até oferecer-lhes dinheiro para que vendam as facas. Visto que num país tão pobre como a Guiné, fazer fanados é um verdadeiro negócio, um meio de sustento, depois de venderem as facas, as fanatecas compravam outras; e, perante a maior fiscalização que decorreu da implementação da lei, passaram a praticar este ato em ambientes mais reservados, chegando mesmo a deslocar-se a casa das crianças cujas famílias pagavam para que fossem fanadas.

As implicações físicas da mutilação genital

Sara Moura, estudante de medicina na Universidade do Minho e membro da Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM), elucidou os presentes sobre as repercussões físicas — para além das elencadas anteriormente, contam-se também a morte da mãe durante o parto e complicações urinárias -e psicológicas que este momento traumático para as crianças terá na sua vida futura, especialmente a nível romântico e sexual. Alertou, ainda, para a dificuldade de os médicos reconhecerem as vítimas; e de todas as questões culturais e até mesmo judiciais que se levantam quando confrontados com este problema, tendo em conta que a sua ação será preponderante, visto que o médico pode ser a primeira porta para que a vítima se abra sobre o que se passou — assunto pouco ou nada falado nas comunidades de origem, tanto que existem mesmo pais e mães que nem desconfiam que as filhas tenham passado por tal.

A sua prática é um tanto recente em Portugal e, como tal, cabe aos novos médicos informarem-se sobre o tema, uma vez que o seu estudo não é recorrente ou até mesmo materializado em manuais; e que a linguagem se apresenta como uma barreira que pode retrair a paciente sinalizada — por exemplo, a designação desta prática como “mutilação” pode gerar uma atitude defensiva por alguém que faça parte daquela realidade.

Depois de todas as intervenções, Ana Pereira precedeu o debate com uma questão: “será que ter uma lei específica não será, de certa forma, uma maneira de segregar ou rejeitar uma certa cultura?” O debate prosseguiu, focando-se no trabalho da ANEM, que realizou até palestras de esclarecimento sobre como esta prática se inseria no campo da violação dos direitos humanos, a sua parte legal e possíveis soluções, não esquecendo, mais uma vez, a preponderância da ação clínica e da linguagem a utilizar. Questionou-se sobre o que era mais correto — a denuncia ou a prevenção — quanto aos casos que estivermos a par, sendo que Marco enfatizou a prevenção e a considerou até mais importante que a ação.

Debateu-se o trabalho de investigação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e falou-se na plataforma experimental para denúncia destes casos, se bem que a articulação entre os diversos organismos envolvidos ainda é diligente. A responsabilização dos pais e a criminalização dos atos preparatórios foi ainda referenciada e as questões culturais que envolvem este ato, que, neste momento, estão a mudar: antigamente, uma mulher não-excisada era forçosamente vista como “não desejável para uma relação estável”, porém, contrária e recentemente, os rapazes mais jovens tendem a rejeitar mulheres excisadas, estando a julgar as mulheres por um ato que não lhes disse respeito, que foi perpetuado sem o consentimento das mesmas.

Em jeito de conclusão, ficou certo que a mutilação genital é um problema “do presente e do futuro”, como referiu Sara, com uma prática cada vez mais expressiva em Portugal. Esta prática pode ser vista como uma realidade ligada a questões culturais – há quem o julgue mesmo um caso de saúde pública: há quem a considere uma boa prática para a higiene e quem tenha a ideia de que, se não for efetuada, o órgão pode mesmo crescer e desenvolver-se – ou ligada à instabilidade política, constantes golpes de Estado, no país em que são levadas a cabo. Como tal, o recurso à sensibilização e à informação será o ideal para a minimização dos danos e das ocorrências deste ato.

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