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“TOXICODEPENDÊNCIA E DIREITOS HUMANOS: É ESTA A MINHA LUTA”

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Foi quando começou a ser tutora de crianças ciganas, no bairro de São João de Deus – através de uma cadeira opcional da faculdade – que Sofia percebeu que era em contexto comunitário que queria trabalhar.

Através do voluntariado entendeu as fragilidades e também os recursos e potencialidades da comunidade. Percebeu que “nós vamos para um sítio onde achamos que podemos ser alvo de algum tipo de ataque e é exatamente o contrário. Sempre me senti segura e respeitada. As pessoas gostavam e valorizavam a minha presença”, explica.

O trabalho com as crianças permitiu o rápido envolvimento com as famílias, com a comunidade e com o bairro e pôde perceber que “os problemas são globais, não são só do indivíduo. De repente, já estás a trabalhar com o bairro inteiro”. Como afirma, “é um efeito multiplicador”.

Com o espírito de comunidade “sempre muito presente” na sua vida, durante a licenciatura, sentiu que não fazia sentido fazer voluntariado intensivo durante o ano e parar no verão. Por isso, partiu em missões para Luanda – por duas vezes -, Moçambique e Cabo Verde durante os verões da sua licenciatura em Psicologia.

“O Gas’África foi uma necessidade de não me contentar, de me inquietar sempre com o que se passa no mundo. Quanto mais nós sabemos, mais inquietados e revoltados ficamos. Portanto mais necessidade temos de fazer alguma coisa”, afirma.

Sofia garante que, no Gas’Africa, pode por em prática de forma completamente diferente os quatro pilares que já existiam na sua vida e que faziam todo o sentido para si – comunidade, serviço, oração e simplicidade. Pode conhecer novos sítios, fazer voluntariado e experimentar estes pilares diariamente, vivendo-os de forma plena, o que “trouxe uma revolução completa em termos de identidade à minha vida”, afirma.

No Gas’África, Sofia percebeu que durante aquele tempo em missão tinha de estar ali para e pelos outros e “servir todos os dias”, o que a fez refletir sobre se esses dois meses seriam suficientes. Foi por isso que, quando terminou a licenciatura e estava já a trabalhar numa área da qual gostava, decidiu regressar a Cabo Verde. “Tinha de ir para um sítio onde já tinha estado e Cabo Verde tinha sido o sítio mais recente, em que já tinha parcerias garantidas, sabia que a Câmara Municipal me queria acolher”, explica.

Acabou por ficar por dois anos e meio. Primeiramente, a fazer voluntariado, depois, acabou por ficar a trabalhar. Esteve a coordenar dois projetos, o Centro Comunitário África 70 e o Centro Comunitário de Santa Maria. Desenvolveu “programas de educação para os direitos humanos, formações na área da empregabilidade, de empreendedorismo, desenvolvimento pessoal e social, dinamizamos ações de voluntariado… Fizemos imensas coisas”. Como explica, a coordenação de um centro comunitário implica muitas coisas e o seu principal objetivo era “mobilizar toda a comunidade e fazer com que o centro fosse da comunidade para a comunidade”.

O grande desafio e o objetivo a que se propunham, nos centros comunitários, era entender quais as necessidade e os recursos da comunidade e o que podiam efetivamente fazer para melhorar a qualidade de vida das pessoas, através de, por exemplo, programas de apoio educativo para crianças, grupos de jovens, serviços de apoio aos idosos, entre tantos outros.

De regresso a Portugal, em 2013, voltou com a “consciência limpa”. “Para mim isto é que é importante: ficar com a consciência limpa de que dei tudo de mim lá”. Esta foi, simultaneamente, uma das razões para o seu regresso: a necessidade de renovação pessoal, de se “reciclar” – através de novas formações e novos conhecimentos.

Atuação ao nível de problemas de adição e dependências e desenvolvimento pessoal e social

De regresso a Portugal, Sofia retomou um projeto do qual faz parte, até hoje.

A CLEANIC é uma empresa – também denominada de comunidade terapêutica – que ajuda três grupos de pessoas: pessoas com problemas de adições ou dependências; pessoas com alguma adição e também uma perturbação psicopatológica ou, por último, um grupo de pessoas que sofrem de alguma psicopatologia (como perturbações de personalidade, de humor, de ansiedade, etc.)

Esta comunidade funciona como uma microsociedade: “É um espaço onde as pessoas – em regime de internamento ou ambulatório – vão para um espaço protegido com as mesmas características de uma sociedade, mas é uma sociedade simulada”, explica. “As pessoas experimentam ter um novo estilo de vida, em que tentam reduzir ou eliminar comportamentos disfuncionais e desenvolver competências sociais e pessoais. Estão num espaço protegido, sem situações de risco”. Este acompanhamento é procurado ou pelas famílias ou pelos médicos, hospitais e segurança social.

Sofia faz também parte da associação UNIFICAR – criada com o objetivo de promover o desenvolvimento de competências sociais e pessoais para que as crianças sejam capazes de lidar com situações de risco. Surgiu da ideia conjunta de um grupo de familiares e amigos de pessoas que já tinham tido problemas de dependências, tendo a ideia inicial sido apoiar outros familiares e amigos de pessoas neste tipo de situações.

Após atividades como workshops, surgiu também o projeto DROPI: pensado inicialmente para os filhos de toxicodependentes, um grupo em maior risco, foi depois generalizado para todas as crianças. Assim, existe um livro, cuja personagem principal é o Dropi, um kanguru com poderes especiais – “poderes que qualquer um de nós tem”. Com orelhas muito grandes, atento a tudo o que se passa à sua volta, à medida que passa por várias aventuras, quanto mais exprime os seus sentimentos e os partilha com os outros, mais forte ele se sente. “Isto permite ensinar as crianças a exprimir o que sentem e pensam de forma a torná-las mais capazes, adequadas e resilientes para desenvolverem competências para saber lidar com situações de risco”, explica Sofia.

Sofia acredita que Portugal oferece soluções muito positivas para problemas sociais como a toxicodependência. “A nossa legislação é pertinente e adequada e penso que temos uma variedade de respostas e soluções suficientes. Aquilo que sentimos, por vezes, é que o processo podia ser mais agilizado.” Com a crise financeira que Portugal atravessa, houve “uma redução das respostas. Porém, em termos de intervenção, temos respostas muito adequadas”.

Quanto à reintegração na sociedade, “aquilo que tentamos transmitir às pessoas é que elas são responsáveis pelas suas escolhas e caminhos mas também pelo seu tratamento e por terem decidido dar a volta por cima”, garante. Apesar de existir “sempre algum estigma na sociedade”, “o processo de reinserção tem também a ver com as pessoas verem-se como resilientes”.

“Todo o voluntariado que fiz, lá fora e cá, fez-me crescer como psicóloga”

Atualmente, Sofia exerce como psicóloga. Durante todo o seu caminho, acredita que “todo o voluntariado que fiz, lá fora e cá, fez-me crescer como psicóloga”.

Como explica, é através do conhecimento de outras realidades e de outros problemas que podemos perceber o que se passa no mundo. “A empatia é a capacidade de nos pormos no lugar do outro e esta empatia implica contacto, estar verdadeiramente com o outro”. Por isso, defende que “o contacto próximo com diferentes realidades e culturas abriu-me muitos horizontes e trouxe-me um maior entendimento sobre as pessoas”.

Hoje, Sofia é também voluntária na Plataforma de Apoio aos Refugiados, onde contacta instituições para acolher famílias refugiadas – um processo que acredita que tem sido bem implementado. “O problema está em fazê-los chegar cá”, refere.

Sendo uma pessoa com sonhos e projetos frequentes, num futuro a médio e longo prazo, para além de querer continuar a “dar ferramentas e orientar pessoas e organizações a construir os seus próprios projetos e negócios”, um dos sonhos de Sofia é trazer o modelo já existente no Brasil das prisões e centros educativos sem guardas. “Acho que precisamos desse fôlego e dessas novas respostas”. Como afirma, “os meus projetos são sempre nesta lógica de cooperação e desenvolvimento, intervenção comunitária, empoderamento”.

Apesar de não exercer na área dos direitos humanos, atualmente, Sofia não se desliga desta área e da intervenção a nível social: “Aquilo que eu faço é advocacy: é dar voz, reclamar, passar conhecimentos, ler, informar-me, fazer sessões de educação para direitos humanos, no sentido de tentar educar com a base. Se cada pessoa trabalhar para a sua família, bairro e comunidade, este mundo fica melhor”.

No seu caso, “delinquência juvenil, toxicodependência e direitos humanos: É esta a minha luta”, remata.

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