Sociedade

O HOMEM DA VITÓRIA

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Por João Carvalho

É uma tarde de correria no Porto, como tantas outras. Na Vitória, as pessoas perdem a conta aos passos; apressadas percorrem as ruas do centro da Invicta. Ainda assim, não se coíbem de cumprimentar José Brochado que, a cada passo, dirige um “Olá” a um amigo diferente. Conhece-os pelo nome e por eles é conhecido. O “Homem da Vitória”, como é tratado, sabe de cor o Porto e a sua gente. Conhece-lhes os problemas, as fraquezas e os medos. Para ele, não fazia sentido ser doutra forma, até porque, viver no Centro Histórico do Porto é precisamente isso, “é estarmos perto do povo, é estarmos perto dos problemas, é dar-lhe força para resolver esses problemas.”

José Brochado nasceu no Porto, em Paranhos, quando esta era ainda uma zona de “campos, lavoura e nada mais”. Dizia-se “Vamos ao Porto, como se já lá não estivéssemos”.

Visitou, pela primeira vez, o Centro Histórico quando tinha 8 anos. Foi quando sentiu, pela primeira vez, a paixão pela Invicta, “Recordo-me que fiquei naquela esquina “ali” a olhar para a varanda, para ver o General Humberto Delgado e senti-me logo apaixonado por esta cidade”.

Entretanto, viveu em cidades como Évora e Bragança, mas regressou tempos depois. A chamada da Invicta era mais forte, mas “foi um bocado difícil esta gaiola prender o pássaro que eu era”, refere. Desde então, assumiu-se com um verdadeiro portuense, “certo, mau e desconfiado”, mas fiel à terra que se tornara casa.

José Brochado não esconde o orgulho de ver o “seu” Porto novamente nas bocas do Mundo. A era de um Porto adormecido é já passado e as sucessivas distinções internacionais, ao nível do turismo, demonstram o acordar da Invicta. “Porque o Porto andou para aí, coitadinho… Tiraram-no da batalha, meteram-no atrás do Palácio, depois, foram mete-lo à Casa dos 24, por trás dos vidros, e agora está na Praça da Liberdade, que é o que o Porto é. Uma cidade de Liberdade.”

Na sua visão, a verdadeira essência do ser portuense está, “sem dúvida”, no Centro Histórico. Viver na Vitória é, para si, como “viver num centro comercial”, onde se pode encontrar toda e qualquer variedade de coisas: desde os serviços à cultura.

No entanto, considerando-se vitoriano pelos 40 anos em que lá vive, causa-lhe desagrado ver a sua freguesia “perder a sua identidade”. A união de freguesias, concretizada no ano passado, levou à junção da freguesia da Vitória à de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia e S. Nicolau. “Eu sou contra, contra, contra! 100% contra! Ou mil!”, replica. Para o Homem da Vitória, faria sentido unir o Centro Histórico, uma vez que, como afirma, ainda que “um bocado embaraçado”,“a Vitória tinha poucos eleitores, Miragaia também”. “Se tivéssemos que ir para a União de freguesias, sim senhora, as quatro do Centro Histórico”, Santo Ildefonso e Cedofeita ficariam de fora, não só por não fazerem parte do Centro Histórico portuense, mas porque “os problemas reais das pessoas que lá moram não têm nada a ver”.

“Eu tenho a sorte de viver no Centro Histórico”, mas José Brochado não esconde a tristeza por ter visto esta zona da cidade afastada da cultura, à margem do mundo da literatura e abandonada pelos seus escritores. “[Antigamente] era um Centro Histórico que só tinha o nome de histórico, porque era completamente marginalizado pelos senhores, pelos intelectuais… Que hoje andam todos aí, a ver ruínhas, a ver ruelas. Que me perdoe o meu amigo Germano Silva, mas é verdade aquilo que eu estou a dizer, o único escritor que eu vi, até hoje, que nunca abandonou o Centro Histórico foi o Júlio Couto.”

Reconhece no Porto uma filosofia popular diferente, a capacidade de as pessoas “serem mais naturais no Porto do que em qualquer outra cidade”. “Nós no Porto temos a nossa própria vida, a nossa maneira de ver, a nossa maneira de estar”, afirma-o com uma pronúncia carregada, trocando os V’s, pelos B’s, num discurso do Norte. Para ele, ser portuense é, no fundo, “ser humano”.

A cultura é claramente um tema no qual deposita a sua atenção e interesse. Numa análise social, diz existir falta de cultura no povo portuense. Como causa para tal atribui o facto de haver “muitas igrejas”. “Eu culpo a falta de cultura na minha cidade à igreja e ao futebol”, afirma. “Pergunta-se a um sujeito qualquer quanto custa um saco de batatas e ele responde-te «Mas esse gajo joga no Porto? No Benfica?», »Não pá, batatas, comestível», «Ah, então não faço ideia».

Por João Carvalho

Mas o “Homem da Vitória” dedica-se a uma outra paixão: para além da cidade que o acolheu, José Brochado é um apaixonado pelo teatro. A arte do “fazer de conta” conquistou-o nos seus tempos de criança, quando vivia no seio de um Portugal conservador e se deixou fascinar pelo mundo em cima do palco. Desde então nunca parou. “Trambolhão daqui, trambolhão d’acolá foi parar ao grupo dos “Três Modestos” (grupo já desaparecido). Depois saltei para o Teatro Experimental do Porto, para a direção, e a partir daí… ainda ando metido neste mundo todo.”

“Não só no teatro, mas em tudo o que eu faço na vida”, a sua filha é o seu “poço de inspiração” e a quem, bem como ao neto, passou a sua paixão pelo teatro. Considera a representação nos palcos uma arte contagiosa; uma paixão transmitida de amigo para amigo. Mas no seu caso, não foi assim que começou: “Eu fui para o teatro por mim. Pela necessidade que eu talvez tinha de comunicar com as pessoas.”

Ao fim de vários anos, continua membro ativo e dinamizador do Grupo de Teatro Comunitário da Vitória, onde pisa realmente o “palco” da Invicta. Todos os dias interpreta o papel de portuense, desperto para a cultura e em alerta para os seus problemas. Declara que o povo portuense está, ainda, muito desligado do teatro. Afinal, “O Porto nunca foi uma cidade habituada a ir ao teatro”. Mas nota uma evolução, um interesse crescente dos jovens pela representação:“começa-se já a ter gosto para ir ao teatro”. “Agradeço à malta jovem que já vai ao teatro (…) Tento educar o jovens e mostrar que a palavra <<teatro» existe.”

Mas “pela sua simplicidade, pelo seu arrojo”, diz ser “muito difícil fazer-se cultura nesta cidade”. As particulares e o público resistente do  Porto assim o ditam, tornando a produção cultural um meio mais desafiante e único.” Sem dúvida que é um arrojo fazer-se qualquer coisa nesta cidade”.

A experiência de Brochado influencia também os projetos sociais nos quais está envolvido. No entanto reconhece que influencia mais as pessoas pelo seu “cariz político”. Com orgulho na voz, refere que todos os projetos culturais que desenvolve têm o propósito de solucionar problemas sociais específicos, “Quando eu faço qualquer projeto cultural na Vitória é sempre com o pensamento de que vou ajudar a que se acabem os ditos flagelos que existem na minha freguesia. E tenho conseguido.”Orgulha-se do seu trabalho de aliança entre o ativismo social e o teatro, através do qual ajuda pessoas a descobrirem “um lado mais são para se viver”.

Um inconformado com a pacatez, José Brochado é conhecido pelo seu dinamismo cultural e social. “É preciso estar constantemente na rua, na luta, na batalha. É preciso dar um abanão aos «cotas»”, declara.

Quando questionado sobre que rua escolheria para ter o seu nome, José Brochado afirma que nunca pensou nisso. Embora feliz pela atribuição aos amigos, como é o caso de João Guedes, que possui já uma rua com o seu nome, acha isso “uma parvoíce”. “Nem a viela, nem a “calle” mais estreita, mais sombria” escolheria. Concorda que os seus projetos valem por si, não precisa de mais nada. “O nome de uma rua, uma estátua, para quê?”, questiona, acrescentando, “A gente vale pelo que vale. O teu valor está em ti, não está na roupa que vestes, não está na maquilhagem que usas, não está no penteado que fazes, tu vales pelo que vales.”

No fim da conversa, olhavamos para um homem do Porto que não pensa na cidade pela sua imensidão, mas pelas suas particularidades vistas ao pormenor, em ponto pequeno como cada um de nós. Uma análise da cidade à escala humana. Em cada passeio a busca dos problemas, das tormentas e anseios da Invicta. Em cada projeto, a solução para eles.

As rugas do seu rosto dão-lhe um ar cansado, revelando experiência, dinamismo e dedicação ao Porto e às pessoas. Despede-se, mesmo assim, dizendo: “Recuso-me a envelhecer”.

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