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Afeganistão: A reconquista de Cabul

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  • O cemitério dos Impérios e a história do Afeganistão

 

A história do Afeganistão foi sendo consecutivamente marcada pela decadência, conflito, desordem e instabilidade. Embora se encontrem no espaço marcos arqueológicos que indiquem o assentar das primeiras comunidades sedentárias agrícolas no mesmo, o país tem padecido com o decorrer das inúmeras invasões externas, aliadas a um conjunto de domínios continuamente dissolutos, seja pelas inconsistências políticas ou pelas logísticas, já que, se por um lado se encontra posicionado num ponto geopolítico asiático bastante favorável, por outro é assoberbado por estruturas montanhosas dificultosas. As fragilidades dos governos instalados apontaram o Afeganistão como sendo um verdadeiro “cemitério dos impérios”, uma nomenclatura que traduz também o estado de calamidade e morte intensa inerente ao processo.

Em 1979 a União soviética afiliou-se ao governo afegão com o propósito de salvaguardar o comunismo, tornando-se um aliado imprescindível na luta face aos Mujahedin, um grupo de rebeldes muçulmanos que, com o apoio de países como a China e os EUA, e prezando pelo extremismo da lei islâmica, se opõe fortemente ao socialismo. É neste momento que vemos o país mergulhar numa custosa guerra fria, que ceifou a vida a milhares de cidadãos. 

Após a retirada das tropas soviéticas do território, e da decorrente queda da União Soviética, em 1989, o grupo Mujahedin depôs, em 1992, o governo afegão. No mesmo ano, instaurou-se uma intensa guerra civil entre os grupos que o compõem, pelo que o Afeganistão permaneceu imerso em hostilidade e conflito.

 

  • Os Talibã: Quem são e qual a sua missão?

 

Os talibã, um grupo nacionalista e fundamentalista islâmico, que, à letra da língua afegã, representa os “estudantes pela religião”, nasceu em 1994, de uma das filiações dos Mujahedin, em seminários religiosos, tendo, ainda, inúmeros voluntários muçulmanos advindos das diferentes partes do mundo contribuído para a manutenção do núcleo e a solidificação da sua luta. Objetivando o rompimento com a corrupção e, principalmente, implementação e autoridade absoluta da Sharia, a lei islâmica, e defendendo o jihad, os talibã assumiram, em 1996, o governo do país, autointitulando-se Emirado Islâmico do Afeganistão. Apesar de não lhes ter sido reconhecida, à altura, internacionalmente a sua soberania, mantiveram o domínio sobre a região até ao ano de 2001, em que sucumbem face às tropas norte estadunidenses e à República.

 

  • A invasão norte-americana e queda dos talibã

 

O ano de 2001 foi marcado por um evento terrorista que rapidamente se disseminou por todo o planeta, transmitindo uma mensagem de ódio e temor inigualável. No ano assinalado, os EUA padecem com o sucesso do ataque às torres gémeas, organizada pela Al Qaeda, a 11 de setembro, sob o comando de Bin Laden, um extremista radicalista que havia, previamente, combatido ao seu lado no Afeganistão e se encontrava, agora, sob a alçada do mesmo país, no papel de hóspede. Após a recusa da submissão do líder terrorista por parte do governo talibã, o Afeganistão é invadido pelas tropas de Bush. Com o apoio da NATO, que aciona o seu artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, determinando a participação imediata dos seus membros constituintes na guerra militar, e homologados pela ONU, os EUA rapidamente fazem ceder o regime talibã perante o governo civil da República Islâmica do Afeganistão.

 

  • 15 de agosto de 2021: A reconquista de Cabul 20 anos depois

 

Independentemente da invasão norte-estadunidense, que se revelou marcadamente danosa para os radicalistas islâmicos, esta falhou na suspensão total da sua ação, já que, resguardados pelas estruturas montanhosas do território e motivados por uma política religiosa vigorosa, os talibã reemergiram, em 2004, para dar continuidade à sua luta ideológica.  Subsistindo essencialmente por via do tráfico de ópio, bem como pela aplicação de taxas à serviços como o da eletricidade e pelo recrutamento contínuo de indivíduos externos que partilhassem as mesmas convicções, os radicalistas recuperam gradualmente o domínio sobre as diferentes áreas Afeganistão, numa guerra que se perpetua por anos a fio.

O exército afegão revelou-se, contudo, manifestamente fragilizado, já que a ajuda humanitária prometida pelos países aliados à causa é insuficiente, assentando em corrupção, deserção e até mesmo em debilidade numérica e tática. Um exemplo desta decadência traduz-se no uso da força aérea, inicialmente reconhecida como o seu principal foco de vantagem, porém facilmente deposta pelos constantes ataques que os talibã estrategicamente lhe haviam direcionado, a par da dificuldade da manutenção da mesma por parte da estrutura bélica.

Os Estados Unidos da América, principal aliado militar do governo afegão, exprimiram, à data da presidência de Barack Obama, pretensões de afastamento de uma guerra que se caracteriza, no momento, como a mais longa e custosa experienciada pela nação. Já com Trump na direção da mesma, essa aspiração foi formalizada, num acordo negociado entre EUA e os talibã. Assim, em maio de 2021 dá-se o início da retirada das tropas norte estadunidenses da região, um fenómeno que mergulha novamente o país num dilacerar contínuo dos direitos humanos.

A 15 de agosto de 2021 os talibã reconquistara a capital Cabul, a única cidade ainda sobre o domínio do governo civil, depondo-o de imediato, sob uma exposição que nos chega através do seu porta voz, Abdul Ghani Baradar. No mesmo dia o ex-presidente afegão Ashraf Ghani exila-se, sem nota prévia, no exterior, um movimento identificado pela sua ministra da educação, Regina Hamidi, como um ato de abandono e traição à nação afegã, que prevalece, quatro décadas depois, num estado de angústia e hostilidade, pelo que identifica os seus esforços como tendo sido em vão e antecipa, abrigada meramente pelas instáveis e inegavelmente translúcidas paredes da sua residência, uma morte iminente, seja pela sua contribuição para o governo, seja pela sua condição de mulher.

Se outrora não era concedido aos Emirados Islâmicos o reconhecimento internacional do seu governo, no presente países como a China e a Rússia, que apresentam tensões evidentes com os EUA, constatam já a sua soberania, um fenómeno que se explica também pela condição de maior estabilidade em que este se encontram, já que os danos da segunda guerra mundial se apresentam evidentemente ultrapassados.

Meros dias após a recuperação do domínio talibã sobre o território de Cabul, já se repercutem as consequências do sucumbimento do país ao rigor da Sharia, compreendida segundo a visão extremista do grupo . Ainda que o recém instalado governo prometa ser mais inclusivo que o anterior, o caos foi instalado e a imensidão de refugiados afegãos tomou proporções ainda mais consideráveis, contando-se já inúmeras causalidades oriundas do processo. Espera-se, contudo, que a comunidade internacional se una para a pacificação da transição do governo e para que os cidadãos vitimados pela jurisprudência do núcleo sejam acolhidos com dignidade.

 

Texto de Carina Seabra. Revisão por Inês Santos e Beatriz Oliv.

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