Sociedade

A reconquista de Cabul: repercussões geopolíticas

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  • A posição dos EUA

 

O estado de calamidade pública que irrompe da evasão das tropas americanas do território afegã, traduz-se, apesar de antecipado, numa incalculável catástrofe nacional. Joe Biden, o atual presidente dos EUA, reconhece a rapidez agilidade do domínio da milícia talibã, já que se esperava que o movimento se consolidasse em meados de setembro, contrariamente aos meros dias após o êxodo total das suas tropas na região, tendo, na sequência da mesma, enviado novamente soldados para a região para que pudessem assistir no exílio de democratas e aliados ao governo americano. A decisão tomada pelo líder da casa branca está a ser fortemente questionada, uma vez que, embora se traduza na solidificação de um acordo definido pelo governo prévio, se deu de forma abrupta, danando gravemente a população afegã, incluindo cidadãos com os quais colaborou e que, num momento de hostilidade, abandona à mercê das milícias terroristas.

À comunidade internacional, Biden não demonstra qualquer pesar ou remorso pelo seu ato político, ou pela possível tortura e morte que inúmeros cidadãos sofrerão pela precipitação inerente à mesma, referindo que os Estados Unidos da América cumpriram com os seus objetivos, que passavam por punir Bin Laden, a organização Al Qaeda, e impedir que o país se cristalizasse numa região de abrigo, percutora dos seus atos, pelo que procurava impedir novos ataques terroristas para a nação que lidera. Ainda, o democrata assume que os efeitos de colapso evidenciados pelo movimento que orientou são da inteira responsabilidade do governo afegão, marcadamente corrupto, que diz não procurar negociar com a milícia talibã, pelo que os EUA não iriam continuar a lutar uma guerra que o próprio governo afegão não se propunha a lutar, essa responsabilidade e testemunho não seriam passados a um quinto presidente. Recorde-se que o Washington Post acedeu e expôs, em 2019, documentos confidenciais que revelam a corrupção do governo afegão e um cenário inquietante e duvidoso relativamente aos esforços afegãos no combate ao terrismo, sendo este um dos motivos que levou à retirada das tropas norte estadunienses do território.

 

  • O futuro do Afeganistão

 

A ilusória serenidade patente nas cidades afegãs acobertam um universo de terror e inquietação resultantes da confirmação do grupo talibã no uso da violência sob a qual compreendem a Sharia no domínio do território. O medo dos cidadãos é camuflado pela pesada artilharia  que encobre  os territórios e dilui os símbolos que outrora a caracterizavam, como é o caso das imagens dos rostos de diferentes mulheres, da arte e da música. Pesa no ar a hostilidade, pairando sobre a mesma a inquietação pelas  penitências tortuosas do recém-instalado regime, onde se encontram leis que determinam a modéstia no código de vestuário civil e punições como apedrejamento e amputação para delitos como o adultério e o roubo.

No aeroporto Internacional Hamid Karzai a situação é de caos e instabilidade:centenas de cidadãos apelam desalmadamente pela assistência no exílio, sacrificando-se inúmeras vidas no impulso pela liberdade e pelo direito à vida condigna. Cenários obscuros como aquele que corre, nos dias de hoje, os ecrãs dos cidadãos por todo o mundo, revelam fortes imagens de um avião que se lança velozmente pela pista aérea, esmagando os indivíduos e projetando aqueles que se atrevem a lutar por abrigo nas suas asas. A este acontecimento alia-se a incapacidade do mecanismo em garantir condições para albergar o mar de cidadãos que, incapaz de sair do país, definha às mãos dos mercenários talibãs. As tropas norte-americanas, que supervisionam o local, falham na manutenção da ordem e os gritos que ecoam distintamente encobrem os tiros que descarregam no ar, o número de refugiados afegãos cresce e o futuro é profundamente incerto.

 

  • Os direitos humanos, as minorias e as mulheres

 

Durante o seu império, os fundamentalistas religiosos exerceram atos bárbaros danosos aos direitos culturais, pela proibição de artes como a música e o cinema, bem como humanos, os quais se encontram assinalados na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Em particular, aos direitos da comunidade LGBTQIA+, vítima de punições severas que lideravam à morte dos indivíduos, e da mulher, que se via impedida de trabalhar, estudar, do livre-arbítrio no uso da burqa e até mesmo de se ausentar da sua residência sem o acompanhamento de um parente homem. Esta seria ainda vitimada sexualmente, sendo forçada a violações e casamentos sem o seu consentimento, bem como severamente punida quando incumpridora da lei islâmica.

O recém emergente movimento nacionalista fundamentalista islâmico assume uma postura retrógrada e, embora os talibã indiquem que neste governo respeitarão os direitos humanos, procurando até incluir as mulheres nos papeis governativos do país, relatos de cidades previamente conquistada demonstram o oposto e a própria cidade de Cabul amanhece , num cenário de encobrimento das manifestações do papel da mulher na sociedade, seja pelas suas figuras descobertas, seja, pelas suas conquistas. O retrocesso evidenciado na luta pelos direitos das mulheres encontra-se inegavelmente marcado e disseminam-se testemunhos de jovens que vêem anos de trabalho, estudo e luta serem ocultados pela ditadura islâmica. 

Malala Yousafzai, ativista, prémio nobel da paz e uma vítima dos talibã conhecida internacionalmente pela luta pelos direitos das mulheres, veio a referir que “os extremistas têm medo de livros e canetas”. Se outrora esses elementos eram instrumentos para a educação, levando jovens mulheres à conquista de aprendizagens que seriam motivo de orgulho e de triunfo, de conquista pessoal e universal, são agora entendidos como provas para delitos gravosos ao entendimento da lei islâmica.

Ainda no domínio da preservação dos direitos humanos, a reconquista de Cabul e a tomada de posse do talibã sobre o território afegão anteveem que se invoque o regresso de grupos terroristas como a Al Qaeda para que dele se sirvam como “porto seguro” e, assim, sejam levados a cabo atos desumanos de tortura e violência imensuráveis. Foi com esta nota de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, abriu a reunião de emergência do Conselho de Segurança da ONU, onde apelou não só abertura do grupo talibã no acesso à ajuda humanitária por parte do país sobre o qual detém, desde 15 de agosto, controle governativo, como também à comunidade internacional para que se unisse na prestação desse mesmo auxílio, sublinhado, neste ponto, a abertura de fronteiras para a recessão de refugiados.  Os cidadãos afegãos estão representados, a nível mundial, por um número significativo, tendo a sua contagem crescido significativamente com os eventos recentes, pelo que a porta-voz do ACNUR, Shabia Mantoo, alerta também para a urgência na necessidade de assistência internacional na proteção das suas vidas e direitos. 

“Diante da complexidade das crises humanitárias atuais, como a do Afeganistão, as doações são fundamentais para ampliar o alcance e o impacto dos programas do ACNUR na vida de milhares de pessoas em necessidade de proteção”. Ainda assim, diversos países  erguem já sólidas barreiras, políticas ou materializadas, como é o caso da Grécia, para o acolhimento dos mesmos.

Foi também solicitado, ao mencionado conselho, que não fosse reconhecida nenhuma administração que chegasse ao poder por via da força e da violência, embora membros do núcleo, como a República Popular da China e a Federação  Russa tenham  já validado o grupo talibã enquanto entidade governativa oficial do Afeganistão. O Ministério das Relações Exteriores russo descreve, ainda, que este momento assenta na restauração da ordem pública e na garantia da segurança civil, um comunicado que se afasta, contudo, do episódio dramático de terror ao qual o país sucumbiu recentemente.

 

Diversas organizações humanitárias, como a Amnistia, apelam à ajuda internacional. Agnès Callamard, secretária-geral da Amnistia Internacional alerta que:

“O que estamos a testemunhar no Afeganistão é uma tragédia que deveria ter sido prevista e evitada (…) Os governos estrangeiros devem tomar todas as medidas necessárias para assegurar a passagem segura para fora do Afeganistão a todos aqueles que correm o risco de ser alvo dos taliban. Para tal, é necessário expedir vistos, disponibilizar apoio para evacuações do aeroporto de Cabul, recolocar e reinstalar, e suspender todas as deportações e regressos forçados”, um apelo aos direitos humanos, liberdade e lei humanitária que é também ratificado por António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas.

 

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