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Concentração da Liga Feminista do Porto, Setembro 2021

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Liga Feminista do Porto

A Liga Feminista do Porto é um núcleo que se define pelo feminismo radical, e trabalha em linha com leituras de carácter materialista dialética, através das quais procura organizar movimentos de ação política pelo fim da opressão patriarcal machista. A utilização de um discurso direcionado de mulher para mulher, estimula-se a consciência cívica e exploram-se os diversos temas patentes na sociedade atual, desde o feticídio, à prostituição e à pornografia. Assim, objetivam fundamentalmente “a consciencialização de mulheres para um movimento coletivo de massas, que vá de encontro com as pautas defendidas pelas feministas de segunda vaga”.

 

Início

Visando uma vez mais invocar para as ruas do Porto a luta pelo direito ao controlo reprodutivo do corpo das mulheres portuguesas, a Liga fez-nos chegar, no passado dia 28 de Setembro, uma concentração que reuniu não só os diversos elementos que a compõem, e onde também a presidência do órgão marcou presença, como ainda inúmeros portuenses que se juntaram para impulsionar o movimento. O evento teve início pelas 19H, com uma breve introdução da Vice-presidente, Maria Lúcia, onde a mesma procurou não só apelar ao uso da máscara e ao distanciamento social como apresentar também as palavras de ordem, que estavam já a ser distribuídas pelo mar de coletes amarelos que se encontrava no espaço. (Foram tecidas, neste cenário, sólidas críticas não só à legislação vigente, insuficiente e pejorativa, como também ao próprio serviço nacional de saúde, onde se identificaram comentários e comportamentos de teor violento e preconceituoso face àquelas que optam pelo ato. As  palavras de ordem ecoaram por todo o porto,  vociferadas energeticamente pelos convictos assistentes da concentração da Liga Feminista do Porto, que, durante cerca de uma hora, bradaram pela extensão do prazo legal da IVG e pelo fim do período de reflexão, partilhando testemunhos  e deixando, ainda, palavras de solidariedade para com as companheiras fuziladas e criminalizadas pelo sistema patriarcal que procuram demolir. Os elementos da Liga destacaram, ainda, condutas  presentes no universo português que  materializam em vigorantes golpes à dignidade reprodutiva das mulheres.)

O agradecimento pela presença numa luta que tanto diz à liga, aquela que objetiva o aborto seguro, legal e gratuito, foi o primeiro passo a ser dado pela Vice, que indicou a presença dos portuenses como crucial para as centenas de mulheres vitimadas pelo sistema e que, ao longo dos últimos seis meses, teriam partilhado as suas histórias, profundamente duras e desumanas, pelo formulário disponibilizado pelo núcleo. A violência patente nas vivências destas mulheres, seja pelas que haviam levado a cabo o ato pelo sistema nacional de saúde, pela clandestinidade ou no exterior, indicou sérios desequilíbrios e ofensas à dignidade física e moral das mesmas, pelo que os seus testemunhos foram, ainda que no anonimato, descritos vividamente, para que a sua honra e perseverança se ressalvassem e a necessidade desta luta se fizesse também valer.

 

Testemunhos

Por entre inúmeros testemunhos, corajosamente divulgados, foram continuamente entoadas as palavras de ordem. O aborto seguro foi ressalvado, “agora e para o futuro”, o tempo de reflexão foi descoberto como uma severa punição, o parto forçado encarado como obra do patriarcado, o controlo reprodutivo como efeito do machismo legislativo e a lei machista como alvo a abater pela resistência feminista. A mensagem a transmitir recaiu sobre um povo em luta para que na sua mão estivesse o poder de decisão, já que, sendo abortar um direito, “sem ele nada feito”. Foram também estas as palavras encontradas nos diversos flyers distribuídos e cartazes disponibilizados pela Liga, onde se apelava à subida desta maré verde vociferante, em luta pelo aborto seguro e legal, e se recordava a memória daquelas que haviam sido fuziladas pelo machismo patriarcal.

 

Bárbara Pedrosa

Tiago Ribeiro, um dos elementos que vociferava as palavras de ordem, indicou ao JUP que esta luta descrevia “simplesmente um direito universal, nunca tive que pensar muito nisto, acho simplesmente que todas as mulheres devem ter opção para conseguirem executar o aborto. Há vidas que estão em questão e senti-me motivado para vir aqui ajudar. Os homens também têm que fazer parte da mudança”, tendo sido apoiado pela Beatriz, que ressalvou a importância da presença dos portugueses na rua “Estamos aqui para apoiar a causa, é algo em que acreditamos que deva ser seguro e gratuito para toda a gente. Alguém tem que dar a voz primeiro, se ninguém falar ninguém pode ouvir. É importante cada vez vir mais gente”.

Bárbara Pedrosa

Ao cair da noite foi recordada a “Maria”, 41 anos, sem-abrigo, que padeceu com dores incomportáveis sem que lhe fosse garantido um espaço de segurança para viver um momento tão duro, tendo apenas o quarto de uma casa ocupada, onde vivia o seu companheiro, para realizar o aborto. Lembramos o julgamento público da “Ana”, que indicou ter sofrido com os comentários das enfermeiras portuguesas, que condenavam vigorosamente a menina de 15 anos que havia engravidado e, tendo já passado meramente um ou dois dias das dez semanas em que é permitido, legalmente, o aborto em solo português, não encontrava solução para a sua situação, tendo que ir a Espanha, onde a diferença no prazo legal da IVG, relativamente a Portugal, é de apenas 4 semanas, para abortar. Também a “Joana”, professora, não teve uma experiência digna, tendo-lhe sido recusada a baixa médica, pelo que, no dia do seu aborto, foi trabalhar, dando aulas e reuniões enquanto “escorria pelas pernas e sentia dores incomportáveis”, sentiu-se “como lixo, sozinha, culpada, criminosa”, culpada pelo pai da criança, que a obrigara a abortar. Estas são apenas algumas das partilhas relatadas, onde se encontra patente a violência associada à IVG, um processo duramente restritivo. 

Contextualização

Por solidariedade para com as companheiras, a Liga procedeu a uma contextualização histórico-política, abordando o progresso na luta pela legalização do aborto, que continua ainda limitativo. Em 2005, Portugal contava com cerca de dezassete mil abortos clandestinos, sendo que foram cerca de 14 as mulheres a quem o ato custou a vida, apenas entre 2001 e 2007. Foi também mencionado o célebre Julgamento da Maia, que revelou que Portugal “não só levava as mulheres a tribunal pelo aborto, como também as condenava por isso”. No manifesto em leitura, por Diana Pinto, presidente do núcleo, foi também mencionado o impacto político das campanhas da igreja católica e o seu impacto na sociedade portuguesa. Em Portugal, para se aceder à IVG, o indivíduo enfrenta inúmeros desafios, desde a idade gestacional, meras dez semanas, ao período de reflexão obrigatórios, três dias de infantilização e subordinação, restrições ao aborto medicamentoso, obrigatoriedade de realização do procedimento em hospitais, autorização de partes terceiras, acompanhamento psicossocial, questões geográficas, já que regiões como o Alentejo e Castelo Branco apresentam  constrangimentos evidentes, pelo que o procedimento passa para entidades privadas em Lisboa, o que se traduz numa ofensa clara ao direito à saúde , objeção de consciência, entre outros que compõem uma longa lista de limitações impostas pelo governo português, dito laico e democrático, mas cujas ações se materializam na privação das mulheres ao direito sob o seu próprio corpo.

Discurso

Ao JUP, Diana Pinto, presidente da direção da Liga Feminista do Porto, deixou um comentário que se traduz num compêndio das palavras proferidas ao longo da noite;

Portanto nós estamos aqui a pedir a extensão do prazo legal de acesso à interrupção voluntária da gravidez, o final do período de reflexão obrigatório e o investimento massivo do SNS. Aquilo que nós sabemos é que desde que em 2007 passou as 10 semanas e se disponibilizou o aborto, a questão foi meio que fechada em Portugal, portanto, os órgãos nacionais e políticos não falam sobre a questão, finge-se que o acesso ao direito consagrado das mulheres interromperem uma gravidez está imediatamente permitido e efetivado e nós sabemos que isto é mentira, pelo que abrimos um formulário para recolher testemunhos de mulheres que ou acederam ao aborto pelo SNS ou experimentaram o aborto clandestino ou foram para fora do país abortar e aquilo que estas mulheres nos disseram, esmagadoramente, é que o acesso à IVG não é um direito consagrado. Quando existe esse acesso, o facto de ser legal apenas até às 10 semanas implica que muitas destas mulheres descobrem que estão grávidas muito em cima do fim do período legal e portanto são obrigadas ou a ir abortar em Espanha ou  a abortar clandestinamente e quando descobrem a tempo são frequentemente mal tratadas pelos serviços hospitalares que as recebem, portanto enfermeiras que comentam que elas estão a assassinar crianças, médicos que se recusam a passar aborto farmacológico porque têm objeção da consciência, são obrigadas a viajar altos km, no alto Alentejo por exemplo, onde são obrigadas a ir a Lisboa abortar porque não têm nenhum hospital na sua área que realize a IVG e o que isto significa é que, apesar de estar na lei, primeiro as 10 semanas não existem para muitas mulheres que não têm acesso e depois mesmo quando existem são profundamente insuficientes e não respondem ao direito de cada mulher de controlar o seu próprio corpo, então estamos aqui hoje, a 28 de setembro, dia internacional de luta pelo aborto seguro, como muitas companheiras estão em outros países a fazer a mesma luta nas suas cidades,  a exigir que o governo português  finalmente cumpra com a sua obrigação de fornecer a todas as mulheres controlo reprodutivo sobre os seus corpos”.

 

Bárbara Pedrosa

Desfecho

A concentração terminou com o testemunho da vice-presidente, Maria Lúcia, ressalvando o papel do estado laico na luta pelo aborto seguro e legal “São as mulheres que reproduzem gerações e isso leva a mais contribuintes. Ao longo da história da humanidade os corpos das mulheres foram feridos pela política, custou a liberdade, a autonomia, a gênese da expressão feminina por intermédio da moral religiosa. Chega de limites e imposições restritivas, de maus-tratos”, a qual relembrou também as palavras de Simone de Beauvoir, quando esta indicava a volatilidade e fragilidade dos direitos fundamentais das mulheres, que se viriam abalados perante uma crise política ou económica. Neste sentido, e perante o crescimento da extrema-direita, antevê-se uma luta cada vez mais árdua e longa na defesa pela manutenção destes direitos, uma que cabe a todos nós e pela qual devemos. “As mulheres estão na rua, a luta continua” foram entoações que se destacaram neste momento, interrompendo o discurso com votos de esperança para que fosse perpetuado “o legado das mulheres que deram início a esta luta e se desse o fim do hétero patriarcado de dominação masculina. Autonomia, agora, sem mais demora”. Também Diana Pinto lançou um voto de resiliência, indicando que não haveria descanso enquanto não fosse garantido o controlo reprodutivo do indivíduo sobre o seu corpo. 

A organização desta concentração descreveu uma luta que é constante e visa a manutenção dos direitos reprodutivos fundamentais das mulheres que são continuamente julgadas, seja na praça pública, nos hospitais ou nos tribunais e que perdem, diariamente, a vida, tendo o seu corpo violado e a sua conduta moral questionada.  A salvaguarda deste movimento e dos direitos que procura resguardar cabe a todas as pessoas sendo a sua presença no movimento de incontestável importância, contudo é fundamental destacar, que não estavam cá todas, faltavam as mortas.

 

Escrito por Carina Seabra

Fotografias por  Bárbara Pedrosa

Revisão por Beatriz Oliveira

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