Sociedade
Rússia e Ucrânia, a origem e explicação do conflito
As tensões entre estes dois países remontam os séculos anteriores e a sua relação histórica, política e social. O território atual da Ucrânia integrou anteriormente o império russo e mais tarde, em 1919, transformou-se numa república, tornando-se assim na União Soviética. Contudo, após o fim da guerra fria e o colapso da URSS, a Ucrânia conquistou a sua independência através de um acordo em 1994 entre ambas as partes.
Nas décadas seguintes, o país optou por se voltar para as influências ocidentais. Além disso, sublinhou as intenções de ingressar na União Europeia e na NATO, afastando-se progressivamente da influência política russa.
Anexação da Crimeia
A Crimeia é uma península localizada no sul da Ucrânia e está cercada pelo Mar Negro. Este território era habitado pelos chamados Tártaros (povos de origem turca), só então depois da guerra entre o Império Russo e Otomano em 1783 esta península foi anexada pelo império russo que dominou a Crimeia durante décadas.
Ao longo deste período de dominação russa, o território assistiu a um grande número de migrações o que veio criar uma complexa rede de povos nesta península.
Foi por estas causas migratórias que hoje em dia a população do leste da Ucrânia é predominantemente de origem russa o que leva então a choques culturais.
Contudo, após a tomada de decisão por parte de Nikita Khrushchov em 1954, o secretário do partido comunista da URSS determinou a integração da Crimeia no território ucraniano.
Esta decisão não teve grandes efeitos a nível político na altura, mas após a dissolução da URSS originou sérios problemas políticos entre a Rússia e a Ucrânia.
Ambos os países têm interesses neste território pois representa uma região estratégica situada no Mar Negro, onde predominava grande parte das frotas soviéticas.
No início do século XXI, as relações entre os antigos estados soviéticos e a Rússia deterioram-se consequente de diferenças étnicas nas repúblicas e interesses na manutenção da autonomia.
A Rússia encara o território da Crimeia como um importante ponto estratégico para a conquista de influência geopolítica. Contudo, a presença da Ucrânia dificulta esse objetivo.
Com esta motivação da Rússia, a população ucraniana vê-se dividida onde parte desta população de origem russa apoia uma manutenção da aliança com Moscovo já a outra fração populacional aspira uma aproximação com o Ocidente afirmando a sua independência do domínio russo.
Assim, em 2014 assistiu-se a uma série de mobilizações contra o governo ucraniano, designado por Euromaidan. Estas mobilizações surgiram após a ocorrência de negociações sobre a entrada do país para a União Europeia. Contudo o governo pró-russia de Víktor Fédorovych Yanukóvytch tomou a decisão de pôr fim a estas negociações e criar uma aliança com Vladimir Vladimirovitch Putin.
Diversas manifestações surgiram e levaram ao colapso do governo de Víktor Yanukóvytch e instaurou-se um governo provisório. Contudo a Rússia não considerava este governo como provisório e respondeu a esta “ameaça” com o envio de tropas para a região da Crimeia, originando assim a anexação russa da região.
Ainda no mesmo ano, o país ucraniano assistiu à eleição de um governo pró-ocidente.
As relações entre a Rússia e a Ucrânia atingiram níveis ainda mais críticos. Como resposta, o Kremlin decidiu então apoiar os movimentos rebeldes da Ucrânia e separatistas.
Várias motivações de aproximação com a UE foram realizadas ao longo dos anos até finalmente, em 2017, o acordo de associação Ucrânia-EU foi concluído, promovendo laços políticos e económicos mais fortes (em que a zona de comércio livre abrangente e aprofundado integra a parte económica do acordo) e o respeito pelos valores comuns.
A NATO, fundada em 1949, expandiu-se para o Leste da Europa após a dissolução da URSS. Várias antigas repúblicas soviéticas aderiram a esta organização, mas a Ucrânia em conjunto com a Geórgia e a Bósnia-Herzegovina ainda não integram a NATO apesar das inúmeras tentativas.
A Rússia vê estes movimentos como uma ameaça e exige que a NATO paralise a sua expansão para os países de leste, acusando a organização de estar a cercar o país.
A militarização da fronteira ucraniana
O aumento da presença militar russa na fronteira com a Ucrânia em dezembro do ano passado foi denunciado pelos serviços de inteligência norte americanos, que alertaram para o posicionamento invulgar de tropas e equipamentos militares. O número anunciado que apontava a presença de 90 mil soldados russos foi ainda reforçado tendo em conta os supostos planos militares russos de mobilização militar progressiva na fronteira, que poderiam alcançar os 175 mil soldados numa eventual invasão.
Atualmente, estima-se que estão posicionados 130 mil soldados russos ao longo da fronteira ucraniana, inclusivamente a partir da fronteira entre o mesmo país com a Bielorrússia, aliada de Moscovo, que permitiu recentes exercícios militares russos no seu território.
Em adição à atual presença de militares, a mobilização de carros de combate, peças de artilharia, sistema de defesa antiaérea, lançadores de misseis e de meios aéreos como caças e bombardeiros com capacidade nuclear incorporam a estratégia militar russa na região. No Mar Negro, exercícios militares com navios de guerra reforçam a presença russa e limitam a transitabilidade do mesmo.
Como retaliação à ameaça de invasão, o exército ucraniano prepara-se para o cenário de guerra. Apesar de mais modernizado e preparado do que outrora e parcialmente apoiado pelas potencias ocidentais, as forças militares ucranianas encontram-se em clara desvantagem em caso de conflito direto face à maior capacidade militar do exército russo.
Video of Russian motorized rifle forces and Belarusian SSO training together yesterday as part of the Allied Resolve 2022 exercise. https://t.co/D9Ray0RVLz pic.twitter.com/UUA242Srg8
— Rob Lee (@RALee85) February 12, 2022
Acrescenta-se ao envio de tropas ucranianas para a fronteira o treino militar oferecido aos civis que tencionam participar na defesa do seu território perante o ataque russo, durante o qual recebem instrução de manuseamento de armas e táticas militares básicas. Algumas Organizações Não Governamentais promovem inclusivamente formações em primeiros-socorros.
Para reforçar a presença no leste da Europa, membros da NATO como os EUA e a Inglaterra enviaram tropas estrategicamente posicionadas nos países pertencentes á aliança militar, como ferramenta de dissuasão à ofensiva russa. “Reforçar o flanco leste de norte a sul está no topo da agenda da NATO, não há dúvida sobre isso. Uma coisa que deixamos muito claro para o lado russo é que, se eles continuarem este curso de escalada e se optarem por levar os militares caminho em relação à Ucrânia, eles verão mais capacidade da OTAN no flanco leste.”, afirmou Derek Chollet, Conselheiro do Departamento de Estado dos EUA.
O Secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, descartou a possibilidade do envio de tropas para a Ucrânia, uma vez que o país não pertence à aliança militar. “Estamos a concentrar-nos em oferecer apoio à Ucrânia, ajudando-a a exercer o seu direito de autodefesa. Ao mesmo tempo, estamos a enviar a mensagem à Rússia de que imporemos sanções severas se, mais uma vez, usarem a força contra a Ucrânia”, declara o Secretário-geral, reforçando a via diplomática como forma de apaziguar o conflito.
O alerta dado pelo Ocidente da iminente invasão russa “a qualquer momento” foi retaliado pelas declarações de Maria Zakharova, porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia. “O dia 15 de Fevereiro de 2022 ficará na história como o dia em que a propaganda de guerra do Ocidente falhou”, declarou a porta-voz, “Foram envergonhados e destruídos sem ter sido disparado um único tiro”, citada pela BBC, no mesmo dia em que foi anunciada a retirada de algumas tropas russas da fronteira, que coincide praticamente com a data de invasão anteriormente anunciada pelos EUA, dia 16 de fevereiro.
O Ministro da Defesa russo informou esta terça feira que tropas designadas em exercícios militares na região voltaram para as suas bases nos distritos militares russos do Sul e Oeste, localizados em territórios adjacentes à Ucrânia com uma relativa proximidade. Em resposta, o ministro dos negócios estrangeiros da Ucrânia desvaloriza esta retirada e questiona as intenções reais do Kremlin. “Temos uma regra: não acreditem naquilo que ouvem, acreditem naquilo que vêem. Só quando virmos uma retirada é que vamos acreditar numa redução da escalada [de tensão]”, disse o ministro.
Ao mesmo tempo, o secretário-geral da NATO acrescenta não ter visto “nenhum sinal de redução de presença nas fronteiras nem de desescalada do lado russo”, sublinhando que “o movimento de forças e capacidades não representa uma verdadeira desescalada”. O mesmo realça também a necessidade de “uma retirada substancial de tropas e equipamentos pesados”, de forma a ser realmente encarada como um recuo das forças russas das suas posições atuais de ataque.
A política por detrás do conflito
Os interesses políticos do Kremlin encontram-se na base da tensão gerada na fronteira com a Ucrânia. Em dezembro do ano passado, o Presidente russo, Vladimir Putin, “sublinhou a necessidade de lançamento imediato de negociações com os Estados Unidos e a NATO para definir as garantias jurídicas para a segurança do nosso país, a fim de excluir o alargamento futuro da Aliança ao leste e a instalação na Ucrânia e noutros Estados vizinhos de sistemas de armamento que ameacem a Rússia”, indicou o Kremlin em comunicado.
Para a Rússia, a eventual adesão da Ucrânia na UE e na NATO tem sido encarada como uma ameaça à segurança nacional do país. A integração da Ucrânia na comunidade europeia significaria uma aproximação política do ocidente à fronteira russa, juntamente com o alastramento da respetiva esfera de influência, ao mesmo tempo que a entrada na NATO traduzir-se-ia numa maior presença de tropas da aliança em contacto próximo com as centenas de quilómetros que constituem a fronteira russa.
O porta-voz do governo russo, Dimitri Peskov, afirmou que “A NATO não é a pomba da paz, da estabilidade e da prosperidade, mas sim uma feramente de confronto”, em entrevista à CNN, durante a qual alertou a aproximação a uma “linha vermelha” entre o Kremlin e a Aliança Atlântica. De acordo com Peskov, a Rússia “não pode tolerar” que a NATO esteja a “abrir caminho, gradualmente” para a Ucrânia.
As conversas diplomáticas que seguiram entre os aliados da NATO e Moscovo serviram para estabelecer as posições e limites de ambos os lados na mesa de negociações. As exigências russas de proibição da expansão da Aliança Atlântica, recuo da presença militar na Europa Central e do Leste e fim de exercícios militares próximos das suas fronteiras foram recusadas pelos EUA e a NATO, com ambos reforçando a presença militar na região leste do continente europeu.
As conversações diplomáticas intensificaram-se quer em ameaças como em tentativas de dissuasão ao longo das últimas semanas.
A Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou que a EU responderá a um eventual ataque russo contra a Ucrânia com “sanções económicas e financeiras maciças”, rejeitando as “tentativas russas de dividir a Europa em esfera de influencia” e garantindo a “solidariedade com a Ucrânia e parceiros europeus ameaçados pela Rússia”.
Joe Biden, Presidente dos EUA, admitiu a possibilidade de ordenar sanções diretas contra o governo russo, ao mesmo tempo que procura fornecedores de gás natural alternativos para a União Europeia. O consumo de gás natural da Europa encontra-se altamente dependente do fornecimento russo, que representa 40% das importações europeias da matéria-prima em questão. Ao mesmo tempo, o fornecimento de gás natural aos países europeus representa uma das principais fontes de rendimento da economia russa.
Este “equilíbrio” de necessidade mútua tem sido estrategicamente discutido por ambos os lados, com o gasoduto Nord Stream 2 servindo como uma autêntica arma política na discussão, uma vez que estabelece a ligação de gás natural entre o território russo e alemão. No caso de uma ofensiva à Ucrânia, Joe Biden garante que “não irá haver Nord Stream 2, iremos pôr-lhe fim”, porém, o Chanceler Alemão, Olaf Scholz, ainda não garantiu essa possibilidade.
O Presidente Francês, Emmanuel Macron, foi recebido no Kremlin numa reunião de cinco horas com Putin, com o objetivo de negociar o apaziguamento do conflito e o fim da crise política. Macron declarou ter encontrado pontos de “convergência” através deste esforço diplomático, acreditando na capacidade de entendimento entre o Ocidente e a Rússia face à tensão existente.
Adicionalmente, com o objetivo comum de “evitar uma guerra” e “manter a paz na Europa através da diplomacia”, o Triângulo de Weimar composto pela Alemanha, França e Polónia realizou a sua primeira cimeira em 11 anos. “O nosso encontro hoje foi útil porque temos o mesmo objetivo: manter a paz na Europa graças à diplomacia e a vontade de agir conjuntamente, se necessário”, sublinhou o chanceler alemão.
Entretanto, multiplicaram-se as declarações de países que recomendam a retirada dos seus cidadãos localizados no território ucraniano dada a possibilidade de um ataque. É o caso dos EUA, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e países da UE como a Alemanha, Bélgica, Lituânia e Países Baixos. Junta-se à retirada dos cidadãos as ordens de retirada do corpo diplomático norte americano e russo do país.
O futuro do conflito
O desfecho da crise na fronteira ucraniana é ainda incerto, juntamente com os meios que poderão ser utilizados por ambas as partes para garantir as suas respetivas motivações. Atentando às declarações e posições estabelecidas pela comunidade europeia, em concordância com as graves consequências prometidas em caso de guerra (políticas e económicas), o governo russo sairia fortemente penalizado na decisão de uma ofensiva ao território ucraniano. Porém, o mesmo não tem impedido a sua agressiva estratégia militar praticada na região.
As incertezas que pairam sobre as ambições militares russas conjugam-se com as suas próprias motivações políticas. Na iminência de um conflito direto, uma invasão completa do território ucraniano pode ser descartada perante uma alternativa militar em menor escala que garantisse a imposição dos interesses políticos russos no país e a maior aproximação da Ucrânia à política do Kremlin, em detrimento da influência ocidental.
Junta-se a esta equação de forças a acusação de “guerra híbrida” praticada pela Rússia, que dispensa a necessidade do conflito armado direto entre ambos os lados. Com o objetivo destabilizar a segurança e a estabilidade através de meios não militares, a guerra híbrida visa influenciar a opinião pública e o percurso político de um país, fundamentando-se através de ataques cibernéticos e campanhas de desinformação que usufruem do ciberespaço, ou até mecanismos de insurgência e de migração. O anonimato desta prática dificulta a capacidade de acusação, permitindo assim uma continua ação desestabilizadora sobre o inimigo.
A Ucrânia já denunciou este tipo de estratégias por parte do governo russo, sendo recentemente alvo de ciberataques a sites governamentais e bancos, falsas ameaças de bomba em espaços públicos e de campanhas de desinformação pró-russas.
As versatilidades das práticas de guerra aumentam à medida que a diplomacia tenta acompanhar a escalada militar na região na procura de um entendimento que instaure a estabilidade e o fim da tensão, não só entre o estado ucraniano e russo, mas também entre o mundo ocidental, a Europa, a NATO e a Rússia.
Escrito por Vicente Oliveira Ribeiro e Mariana Macedo Oliveira.
Revisão por Beatriz Oliveira.