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Guerra na Ucrânia: Estrangeiros que fogem do país denunciam racismo nas fronteiras

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A situação foi denunciada, no passado dia 4 de março, pela organização não-governamental Human Rights Watch (HRW): estrangeiros, sobretudo africanos, que tentam fugir da Ucrânia estão a enfrentar, ao cruzar a fronteira, discriminação por parte das autoridades ucranianas. A HRW, que está em contacto com 30 cidadãos de países como a Nigéria ou a Índia, revela “um padrão de bloqueio ou atraso no embarque de estrangeiros em autocarros e comboios, aparentemente para dar prioridade à saída de mulheres e crianças ucranianas”.

As Nações Unidas também revelaram preocupação face às desigualdades relatadas. Numa declaração oficial, Tendayi Achiume, relatora especial da ONU sobre formas contemporâneas de racismo, nota que, para além dos bloqueios nas fronteiras, há relatos de restrições no acesso aos abrigos antiaéreos e, já nos países vizinhos, aos consulados dos países de origem. Achiume relembra ainda que a discriminação “com base em perfis raciais, étnicos e nacionais é proibida pelo Direito Internacional, mesmo no contexto de conflito armado”.

A União Africana (UA) e o Governo da Nigéria repudiaram os episódios de racismo relatados pelos cidadãos de origem africana e asiática que tentam fugir à guerra. Cerca de quatro mil nigerianos vivem na Ucrânia sendo a maioria estudantes.

O ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia afirmou, através do Twitter, estar a acompanhar a situação. “Os africanos que procuram sair [do país] são nossos amigos e devem ter as mesmas oportunidades para regressarem aos seus países de origem”, destacou Dmytro Kuleba, acrescentando que “o Governo da Ucrânia não poupará esforços para solucionar o problema”. Horas mais tarde, na mesma rede social, anunciou a criação de uma linha de apoio para cidadãos africanos, asiáticos e outros estudantes que pretendam abandonar o país.

Tweet do Ministro dos Negócios Estrangeiros da Ucrânia. Fonte: Twitter.

Jovens portugueses também ficaram retidos

“Os africanos têm de esperar, por isso vão para o final da fila” – foram as palavras ouvidas por Domingos Costa e Mário Biangnê, que foram barrados na fronteira entre a Ucrânia e a Polónia. A situação foi denunciada à RTP por Maria Costa, mãe de Domingos: “o meu filho não consegue sequer que a guarda fronteiriça ucraniana olhe para ele e veja o passaporte”.

Os dois jovens portugueses, de ascendência africana, eram estudantes na Universidade Nacional de Medicina de Ternopil, 480 quilómetros a oeste de Kiev. Enfrentaram uma espera de quatro dias, sob temperaturas negativas, até obterem a autorização das autoridades ucranianas para atravessarem a fronteira. A situação implicou o envolvimento da embaixadora ucraniana em Portugal e do ministério dos Negócios Estrangeiros.

Na chegada a Portugal, revelaram a vontade de ajudar os que ficaram para trás. Maria Costa mostrou-se aliviada, mas revoltada com a “injustiça” vivida pelo filho e pelo colega. Relembrou que, do grupo de quatro amigos que tinha abandonado Ternopil, os dois jovens brancos passaram imediatamente a fronteira, enquanto os dois estudantes de origem africana ficaram retidos.

Estudantes mobilizam-se no seu próprio salvamento

Face aos episódios de racismo relatados, muitas associações, compostas sobretudo por estudantes estrangeiros, têm-se mobilizado no apoio aos jovens africanos e asiáticos que fogem à guerra na Ucrânia. Lviv Center for Urban History, Fight for Right, BOCTOK-SOS e Urgent Action Fund for Women’s Human Rights – são algumas das associações que se juntaram para providenciar alimentos, transporte e abrigo aos que necessitam. Para além do apoio material, divulgam informações nas redes sociais, através de hashtags como #AfricanInUkraine ou #BlackInUkraine.

O grupo Black Women for Black Lives, por sua vez, dedica-se a prestar auxílio a cidadãos africanos ou caribenhos. Fornecem, sobretudo, informações relativamente às rotas mais seguras para aqueles que podem enfrentar discriminação na fuga do país. Em entrevista à NBC News, Patricia Daley, uma das fundadoras do grupo, destacou a sensação de que a ajuda que chega é limitada aos cidadãos ucranianos: “Havia uma lacuna e nós tentámos fechá-la”.

A BBC reporta que a Ucrânia acolhe cerca de 76 mil estudantes estrangeiros. Mais de um quarto são de origem africana e 20 mil são indianos. Há muito que o país é uma escolha popular para os universitários. Durante o período Soviético, havia um elevado investimento na educação superior, juntamente com uma tentativa de atrair estudantes originários de países africanos recém-independentes.

Atualmente, as universidades ucranianas são vistas como uma porta de entrada para o mercado de trabalho europeu. O preço das propinas é acessível, os vistos de residência são fáceis de obter, há uma elevada quantidade de cursos lecionados em inglês (sobretudo na área da saúde) e o ensino é considerado de qualidade. Todos estes fatores, em conjunto com um custo de vida baixo em contexto europeu, fazem da Ucrânia um destino preferencial para estudantes de todo o mundo.

Agora, tentam fugir à guerra que já provocou a morte de quase 1700 civis (dados de 13 de março). Num caminho marcado por múltiplas denúncias de discriminação, juntam-se aos mais de dois milhões e meio de pessoas que já abandonaram o país desde o início da invasão militar russa.

Artigo de Mafalda Silva

Revisão de Inês Santos

Fotografia de Bárbara Pedrosa

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