Sociedade
ESTÁGIOS NÃO REMUNERADOS: OPORTUNIDADE OU EXPLORAÇÃO?
Estágio para fotógrafos. Não remunerado “mas com subsídio de almoço”. Das 9h00 às 18h00 para “trabalhar durante o período de licença de maternidade da colaboradora”. Divulgado por uma escola profissional, este anúncio é apenas um dos muitos denunciados pelo site Ganhem Vergonha.
Criado em Março de 2013, o site funciona como plataforma de denúncias de abusos no mercado de trabalho. O Ganhem Vergonha já apresentou centenas de casos, e uma petição pública para a regulação dos anúncios de ofertas de emprego.
Francisco Ferreira, criador da plataforma, está agora a angariar fundos para publicar um livro que reúna as denúncias divulgadas. O livro contará com a colaboração de especialistas de diversas áreas para analisar o mercado de trabalho português, e terá uma secção dedicada aos estágios não remunerados.
Segundo Francisco, os estágios não remunerados constituem um dos principais tipos de denúncias da plataforma. Se nos primeiros meses “não havia noção da dimensão do fenómeno”, os estágios tornaram-se rapidamente no “aspecto principal da plataforma”, explica. O Ganhem Vergonha recebe inúmeras denúncias de ofertas de estágios ilegais, estágios sem remuneração e com a duração de muitos meses, ou estágios “curriculares” que procuram jovens já licenciados.
Segundo a legislação portuguesa, após a aprovação do decreto-lei nº 66 em Junho de 2011, os estágios com duração superior a três meses têm que ser remunerados. Os estagiários devem receber no mínimo o valor do Indexante dos Apoios Sociais (actualmente de 419,22 euros), e um subsídio de refeição diário.
Já os estágios profissionais têm regras específicas, reguladas pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), são sempre remunerados, e o valor varia de acordo com a formação do estagiário. As únicas excepções à obrigatoriedade de remuneração prevista pela lei aplicam-se a estágios curriculares e a estágios obrigatórios para a realização de determinadas funções, para além dos estágios mais curtos, com duração inferior a três meses.
A maioria dos anúncios enviados ao Ganhem Vergonha não cumpre estas regras. Há uma dificuldade em controlar os estágios porque “muitos são feitos sem contrato”, e porque os estagiários se encontram “numa terra de ninguém” sem o “apoio de sindicatos” ou outras entidades que defendam o trabalho do estagiário.
Segundo dados da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), em 2014 foram registadas 1.510 situações de trabalhadores com contratos dissimulados e 2.591 trabalhadores não declarados, entre os quais estarão estagiários. No entanto, não há informações separadas sobre casos que envolvam falsos estágios ou abusos do trabalho estagiário.
“A defesa do estagiário é muito difícil”, afirma Francisco. “A ACT raramente pode fazer alguma coisa”, e muitas vezes os próprios jovens estagiários em início de carreira “têm medo de confrontos” com os empregadores.
O criador da plataforma considera que o problema dos estágios não remunerados é transversal, mas áreas como a comunicação, jornalismo e design são particularmente afectadas devido ao grande número de qualificados. “Sobretudo nas áreas criativas há um abuso absurdo”, afirma.
Promessas vagas de emprego
No final de 2014 a taxa de desemprego jovem em Portugal subiu para 34,5%, de acordo com dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE). É cada vez maior o número de jovens recém-licenciados que procura oportunidades de trabalho e que se vê obrigado a aceitar estágios não remunerados para ganhar experiência. Mas muitas empresas vêem nos estagiários a oportunidade de trabalho gratuito, ainda que sujeita a uma constante rotatividade.
Algumas empresas chegam a ter dezenas de estagiários, que aceitam trabalhar sem remuneração atraídos por vagas promessas da possibilidade de serem contratados. As áreas da comunicação e jornalismo, estão entre as que mais recrutam estagiários não remunerados devido ao elevado número de licenciados e às limitações financeiras dos meios de comunicação.
Ana Isabel terminou o curso de Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa em 2013. Enviou inúmeros currículos, até que, após uma candidatura a um estágio como assistente de produção num canal de televisão foi chamada, mas foi-lhe atribuído um cargo de assistente de relações públicas.
Durante três meses as suas tarefas resumiram-se a receber convidados, responder a e-mails e atender telefonemas. “Às vezes recebia telefonemas sobre o cabelo das apresentadoras”, conta. “Quando me candidatei não sabia bem para o que ia”, confessa Ana, mas acrescenta que “não esperava ir para um estágio atender telefonemas”.
O contrato que assinou com o canal de televisão foi de estágio curricular, não remunerado, apesar de já ter acabado o curso e do seu estágio não ter tido qualquer relação com a faculdade. Quando aceitou a proposta, Ana tinha a esperança de ser contratada, mas conta que “os estagiários que lá tinham estado tinham todos saltado fora”, por isso no final dos três meses regressou à maratona de envio de currículos.
No estágio seguinte esteve como jornalista num jornal diário de grande circulação, foi aceite após uma entrevista de grupo. “Éramos seis e ficámos todas porque cada uma ficou numa área diferente”, conta Ana. Mas avisaram desde logo as estagiárias que nenhuma iria ser contratada, para não criar falsas expectativas.
Assinou um contrato de “estágio profissional” que durou quatro meses. Recebeu 150 euros por mês, valor que deveria cobrir as despesas de alimentação e transporte, mas que estava muito abaixo do salário mínimo previsto por lei para estágios com duração superior a três meses.
Contudo, Ana considera que as condições oferecidas foram “boas”, quando comparadas com as outras ofertas disponíveis, e o balanço que faz do estágio é positivo. Sente que aprendeu muito, apesar de nunca ter conhecido pessoalmente a sua orientadora de estágio, com quem falava apenas por e-mails e chamadas. Pensa que foi uma experiência positiva ter autonomia para trabalhar sozinha, ter que ser “independente” e que mostrar-se “proactiva”. Ana Isabel está actualmente a trabalhar como colaboradora num jornal local, onde é paga à peça. Afirma que não voltará “a trabalhar de graça”.
Uma das consequências negativas dos estágios não remunerados é a elitização de determinadas áreas, visto que nem todos os recém-licenciados têm capacidades financeiras para trabalhar sem receber durante vários meses. O resultado é a exclusão de muitos jovens das oportunidades que poderiam enriquecer os currículos e dar experiência de trabalho na área desejada.
“Os estagiários vão sempre lá estar”
André terminou o mestrado de Comunicação e Jornalismo na Universidade de Coimbra em 2013. Fez um estágio curricular na Lusa, integrado no seu mestrado, e também considera que a sua experiência foi positiva, por lhe ter proporcionado uma valiosa oportunidade de aprendizagem. No entanto, pensa que os estágios “estão a tornar-se num problema social”, visto que as empresas “não contratam porque sabem que os estagiários vão sempre lá estar”. André considera também que os estágios criam um problema para o jornalismo, porque a “rotatividade de estagiários prejudica a qualidade” da informação.
Alicia, estudante do 3º ano de licenciatura na vertente de Comunicação Estratégica na Universidade Nova de Lisboa, está a terminar o seu terceiro estágio, na área do Marketing. O primeiro foi durante o verão numa televisão local, após terminar o primeiro ano de faculdade. Trabalhou durante dois meses a tempo inteiro, não assinou nenhum contrato nem recebeu qualquer tipo de remuneração ou subsídio.
“Fazíamos de pivot, íamos a eventos, recolhíamos imagens e informação e depois montávamos tudo”, conta. O horário variava consoante a quantidade de trabalho, mas Alicia chegou a trabalhar das 9 da manhã às 11 da noite, por vezes até à meia-noite. “Não refilava porque estava no primeiro ano, não podia refilar, tinha que agradecer o facto de já me estarem a dar uma oportunidade para experimentar a área, não discutia horários”, afirma.
O segundo estágio foi numa revista feminina, e também teve a duração de dois meses, sem contrato e sem qualquer tipo de subsídio. Alicia tinha que se deslocar da margem sul para o local de trabalho no centro de Lisboa. “Deram-me a entender que ia ter subsídio de transporte”, conta, “mas acabei por não receber rigorosamente nada.”
Trabalhava de nove a dez horas diárias, e nas alturas de fechar a revista chegava a ficar na redacção até à uma ou duas horas da manhã. “Tive muita sorte em estar lá mas eu percebi que não podia continuar, estavam a explorar-me à força toda”, considera. “Estava a ocupar o trabalho de uma pessoa que devia estar a receber a tempo inteiro”.
Para além das despesas de deslocação diárias da margem sul, Alicia pagou ainda deslocações extra que teve que fazer de táxi nas tarefas que lhe atribuíam. “Tive que ir a vários sítios, lojas que patrocinam a revista”, explica Alicia. “Fui buscar muitas vezes a lojas roupas para as sessões fotográficas… aquele trabalho que a estagiária tem que fazer, tratar das coisas chatas que os outros não fazem”.
Apesar de tudo, Alicia considera que teve sorte, e que a oportunidade lhe permitiu ganhar experiência, melhorar o currículo e a possibilidade de ver alguns dos seus artigos publicados.
Não insistiu no pagamento das despesas de deslocação que lhe tinham sido prometidas porque na redacção se sentia “muito pequenina”, e porque não queria arriscar perder a oportunidade do estágio. “Pessoas que queriam o meu lugar havia às dúzias, quando fui fazer a entrevista havia mais 12 raparigas na sala para entrevista”, conta Alicia.
Baixar o valor do trabalho
Joana, licenciada em Ciência da Comunicação no Instituto Superior da Maia, fez um estágio curricular com a duração de três meses numa rádio local. Passou a maior parte do tempo do estágio “no estúdio a editar notícias” e, ao contrário de Alicia, sente que não aprendeu muito, apesar do estágio ter sido integrado no curso e ser de carácter obrigatório. “Não me davam muita atenção, por vezes nem se davam ao trabalho de corrigir as notícias que eu editava”.
José, licenciado em 2014 em Ciências da Comunicação na Universidade do Porto, fez um estágio curricular que durou três meses num canal de televisão no último semestre da licenciatura. Considera que a experiência foi enriquecedora, e foi contratado no final do estágio.
As universidades têm um papel importante na ligação entre empresas e estagiários. Frequentemente incentivam os alunos a realizar estágios curriculares, que funcionam como uma disciplina e servem para aplicar os conhecimentos adquiridos, podendo trazer inúmeras vantagens para os estudantes.
No entanto, muitas vezes a relação entre a academia e as empresas é perversa. As universidades divulgam junto dos alunos ofertas de estágios que são frequentemente ilegais. São inúmeras as ofertas de estágios não remunerados com a duração de seis meses a tempo inteiro, de falsos estágios curriculares e ofertas com remunerações muito abaixo do valor definido por lei, divulgadas pelas próprias universidades a estudantes e recém-licenciados.
Muitas universidades incentivam e participam em programas de estágio que perpetuam a precariedade do trabalho dos jovens. Um dos mais graves resultados de um aumento dos estágios não remunerados é a redução do valor do trabalho, e a substituição de trabalhadores fixos por estagiários transitórios. Um relatório do Sindicato dos Jornalistas de 2003 já aponta a substituição de jornalistas profissionais por estagiários como um problema do sector, que se tem agravado nos últimos anos.
Recentemente tem-se assistido a uma mobilização de jovens em defesa dos direitos dos estagiários e contra a precariedade do trabalho em vários países europeus. Movimentos como o Intern Aware, (http://www.internaware.org/) uma campanha britânica de defesa de estágios justos e remunerados, têm lutado pela denúncia dos estágios abusivos e os seus efeitos corrosivos.
Em Portugal, a associação Precários Inflexíveis procura combater a precariedade do trabalho e tem dedicado campanhas aos estagiários. Em Abril organizou no Porto a assembleia SOS Estagiário, que contou com palestras sobre os direitos dos estagiários e a inauguração de um mural de denúncias.